Festa da Exaltação da Santa Cruz: « Deus não enviou seu Filho ao mundo para julgar o mundo»

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Leitura do livro dos Números 21, 4b – 9 – Aquele que for mordido e olhar para ela viverá.

«Naqueles dias os filhos de Israel partiram do monte Hor, pelo caminho que leva ao mar Vermelho, para contornarem o país de Edom. Durante a viagem o povo começou a impacientar-se, e se pôs a falar contra Deus e contra Moisés, dizendo:

– “Por que nos fizestes sair do Egito para morrermos no deserto? Não há pão, falta água, e já estamos com nojo desse alimento miserável”.

Então o Senhor mandou contra o povo serpentes venenosas, que os mordiam; e morreu muita gente em Israel.

O povo foi ter com Moisés e disse:

– “Pecamos, falando contra o Senhor e contra ti. Roga ao Senhor que afaste de nós as serpentes”.

Moisés intercedeu pelo povo, e o Senhor respondeu:

– “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela viverá”.

Moisés fez, pois, uma serpente de bronze e colocou-a como sinal sobre uma haste. Quando alguém era mordido por uma serpente, e olhava para a serpente de bronze, ficava curado».

Salmo – Sl 77(78),1-2.34-35.36-37.38 – Das obras do Senhor, ó meu povo, não te esqueças!

Escuta, ó meu povo, a minha Lei,
ouve atento as palavras que eu te digo;
abrirei a minha boca em parábolas,
os mistérios do passado lembrarei.

Quando os feria, eles então o procuravam,
convertiam-se correndo para ele;
recordavam que o Senhor é sua rocha
e que Deus, seu Redentor, é o Deus Altíssimo.

Mas apenas o honravam com seus lábios
e mentiam ao Senhor com suas línguas;
seus corações enganadores eram falsos
e, infiéis, eles rompiam a Aliança.

Mas o Senhor, sempre benigno e compassivo,
não os matava e perdoava seu pecado;
quantas vezes dominou a sua ira
e não deu largas à vazão de seu furo

Leitura da carta de São Paulo aos Filipenses 2, 6-11 – Humilhou-se a si mesmo; por isso, Deus o exaltou acima de tudo.

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravoe tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: ‘Jesus Cristo é o Senhor’, para a glória de Deus Pai.

Leitura do Santo Evangelho segundo São João 3,13- 17 – É necessário que o Filho do Homem seja levantado.

Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos:

– “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem. Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna. Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”.

& Pautas para a reflexão pessoal  

 

z O vínculo entre as leituras

A Cruz sobre a qual Jesus sofreu e morreu originalmente era apenas um instrumento material para a execução de alguns condenados a morte. Mas já na época apostólica ela se transforma em símbolo de sua morte redentora e em sinônimo do próprio Senhor Jesus e até da fé cristã em geral. Assim São Paulo pode falar da Cruz de Jesus como força de Deus (1Co 1,17)[1].

Encontramos os primeiros vestígios da festa da Exaltação da Cruz na primeira metade do Século VII. Segundo a chamada “Crônica Alexandrina”, a imperatriz Santa Helena teria descoberto a Cruz do Senhor Jesus no monte Gólgota. No dia seguinte a Cruz teria sido exposta solenemente para a veneração dos fiéis. São estes os acontecimentos que originam uma comemoração anual em Constantinopla do século V e em Roma no final do século VII. Em 14 de setembro as Igrejas que tinham uma relíquia maior da Cruz (Jerusalém, Constantinopla, Roma) costumavam expô-la para a veneração[2] dos fiéis em uma cerimônia solene[3].

Por outro lado, a liturgia galicana[4] conhecia uma festa da Cruz, no século VII, celebrada no dia 3 de maio. Nessa data, em 628, o imperador Heráclio, recuperou a relíquia da Cruz que se achava nas mãos dos persas e a levou triunfalmente a Jerusalém. Esta festa também era celebrada no Calendário Romano aparecendo com o nome de “Invenção[5] da Cruz” e a de 14 de setembro sob o nome de “Exaltação da Cruz”. São João XXIII unifica as festas suprimindo a de 3 de maio, embora em alguns países – por exemplo no Peru – continue sendo celebrando nesse dia a “Veneração da Santa Cruz”.

Sem dúvida o centro de nossas leituras será o contemplar e venerar Jesus Cristo Crucificado. Assim como o povo Deus se curará ao contemplar a serpente de bronze (Primeira Leitura); São Paulo, neste belo hino cristológico, convida-nos a viver a mesma dinâmica que Jesus viveu: morrer à morte para viver a vida eterna. Finalmente São João nos oferece o formoso e profundo diálogo entre Jesus e Nicodemos: o Verbo se fez carne para que tenhamos «vida eterna». Deus não quer nossa morte sem que participemos com Ele da bem-aventurança celestial.

L «Pecamos por ter falado contra Yahweh e contra ti»

O livro dos Números nos narra a história do povo de Israel durante os quase 40 anos de peregrinação pelo deserto do Sinai. Começa relatando os fatos que aconteceram dois anos depois da saída do Egito e termina, precisamente, com a entrada em Canaã, a terra prometida. O título do livro – «Números» – deve-se às duas numerações ou censos dos israelitas no monte Sinai e nas planícies de Moab, do outro lado do Jordão, em frente a Jericó. Durante este período os israelitas se assentaram durante algum tempo no oásis de Cades-Barneia[6], e depois seguiram caminhando para uma região a leste do Jordão. Como vemos nesta passagem, o livro dos Números é a longa e triste história das queixas e do descontentamento de Israel. Rebelavam-se contra Moisés e até contra o próprio Deus que os tinha libertado da miséria em que viviam no Egito. Entretanto somente duas pessoas: Caleb e Josué, entre todos os que tinham saído do Egito, foram fiéis e sobreviveram para entrar na terra prometida.

A Primeira Leitura narra a passagem do povo de Israel pela terra dos edomitas. A ocupação sedentária de Edom não tinha alcançado o golfo de Ácaba e os israelitas escolheram a rota normal que lhes permitia contornar o território sem problemas. Alguns edomitas se dedicavam ao comércio, outros à extração do cobre ou à agricultura. O povo de Israel se impacienta e cansado renega o «pão do céu» (ver Sal 77, 25) que agora lhes parece insípido apesar de recebê-lo gratuita e diariamente. São Paulo se referirá a esta passagem dizendo: «Nem tentemos o Senhor, como alguns deles o tentaram, e pereceram mordidos pelas serpentes» (1Cor 10,9); porque desprezar o dom é desprezar o doador. Infelizmente o mesmo acontece conosco quando não valorizamos o privilégio de poder receber o verdadeiro «maná do céu» – a Santa Eucaristia – na missa dominical.

Yahweh manda ao povo ingrato e rebelde «serpentes abrasadoras». A palavra «abrasador» provém da palavra «saraf», que Isaías 30, 6 representa como uma serpente alada ou dragão. Por outro lado a palavra hebréia para «serpente» também significa «abrasador»[7]. Quando lemos o pedido de Yahweh a Moisés, vemos que Ele lhe pede que coloque uma serpente de bronze sobre um mastro. Esta serpente, remédio contra as mordidas, será figura da Cruz Reconciliadora de Jesus Cristo. A serpente de bronze foi conservada no Templo até o tempo do rei Ezequias[8], que a fez em pedaços para evitar seu culto idolátrico (ver 2Rs 18,4).

J « Existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação »

 

São Paulo neste formoso hino cristológico da carta aos Filipenses descobre o infinito paradoxo da «kenosis» ou abaixamento de Jesus no qual reside todo o seu mistério íntimo: fez-se obediente ao Pai «até a morte e morte de cruz». Por isso sem prejuízo de deixar perfeitamente estabelecida sua divindade e sua igualdade com o Pai (ver Jo 3,13; 5, 18-23), da qual o próprio Pai se encarrega de dar testemunho de muitas maneiras (ver Mt 3, 17; 5, 17; Jo 1, 33; Lc 22, 42 s); Jesus renuncia em seu aspecto exterior à igualdade com Deus e abandona todas as suas prerrogativas para ser apenas o «Enviado» que fala do que o Pai lhe pediu que dissesse e faz as obras que lhe encomendou fazer.

«Deus não enviou a seu Filho ao mundo para julgá-lo…mas sim para que se o mundo se salve»

O Evangelho faz parte do encontro que Nicodemos teve com Jesus uma noite em Jerusalém. O centro do diálogo se encontra no versículo 11 que é o início de nossa leitura evangélica: «Em verdade, em verdade te digo: dizemos o que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas não recebeis o nosso testemunho ». Acima de tudo, quem era Nicodemos? O que sabemos dele é que era fariseu e membro do conselho supremo judeu (o Sinédrio). Vê-lo-emos defendendo Jesus quando os fariseus queriam prendê-lO (Jo 7,50) e também levando os aromas para embalsamar o corpo do Mestre (Jo 19,39 – 42). Seu nome, em grego[9], quer dizer «povo vitorioso». Nicodemos foi um dos poucos judeus socialmente importantes que seguiram Jesus, embora o fizesse com certo receio. A circunstância material do encontro tem um profundo significado espiritual no Evangelho de São João. Quando Judas deixa Cristo era de noite (Jo 13,30). Agora Nicodemos vem a Cristo, quando é de noite. O primeiro fugia da luz; este, busca a luz no meio e a escuridão.

Nicodemos diz a Jesus: «Rabi, sabemos que és um Mestre vindo de Deus. Ninguém pode fazer esses milagres que fazes, se Deus não estiver com ele»[10]. «Rabi» quer dizer literalmente “meu mestre” em um tom muito respeitoso diferente de Rabôni» que indica mais afeto e proximidade. Lemos nos versículos anteriores os sinais que levam Nicodemos a querer falar com Jesus urgente: «Enquanto Jesus celebrava em Jerusalém a festa da Páscoa, muitos creram no seu nome, à vista dos sinais que fazia»[11]. Sem dúvida Nicodemos era um dos muitos que creram. Para compreender esta reação das pessoas é necessário saber o que se entende por «sinal» no Evangelho de São João. Um «sinal» é um fato milagroso. João o chama «sinal», porque este fato visível a todos eviden­cia a glória de Jesus que supera a experiência sensível imediata. Por isso o sinal pode suscitar na pessoa – dependendo de sua abertura à graça – uma resposta de fé; como Tomé quando viu diante de si Jesus com as feridas da Paixão e exclamou: «meu Senhor e meu Deus!»[12].

Em seu diálogo com Nicodemos Jesus nos deixa talvez uma das afir­mações mais impressionantes sobre o amor de Deus para o mundo: «Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna». Jesus primeiramente nos dá um sinal, algo que será visto por todos: «Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna »”. Jesus evoca um episódio muito marcante na história do povo de Israel (que lemos na Primeira Leitura).

Assim como a serpente de bronze, o «Filho do homem» tem que ser levantado no estandarte da cruz para nos libertar da morte eterna que merecemos com nossos pecados. Pois sempre a Cruz tem o duplo sentido de, por um lado, ser elevado na cruz e por outro, ser elevado à glória do Pai. Ambos os movimentos coincidem. Discutindo com os judeus Jesus lhes diz: «Quando tiverem levantado o Filho do homem, então saberão que Eu Sou» (Jo 8,28). Quer dizer que ali ficará em evidência a verdadeira identidade divina de Jesus. Em outra ocasião lhes diz: «Eu quando for levantado da terra, atrairei todos para mim» (Jo 12,32).

A Santa Cruz é o sinal mais evidente do amor de Deus. Que explicação ou motivação se pode dar ao fato de que o Filho eterno de Deus se fez homem para morrer na cruz? Não há outra explicação nem outra motivação além do amor de Deus por todos e cada um dos homens. É um amor gratuito, sem mérito algum de nossa parte. Quem acredita nisto é destinatário desta promessa de Cristo: «Não morrerá mas terá a vida eterna». Quem não crê recusa o amor de Deus e se exclui da salvação. São Paulo não se cansava de contemplar este fato e de chamar a atenção dos homens sobre a misericórdia de Deus: «A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores» (Rm 5,8). Deus não podia nos dar um sinal maior do seu amor que a Cruz de Cristo. Para isso foi Jesus foi elevado sobre a Cruz: para que o contemplemos, creiamos e tenhamos vida eterna.

 

+ Uma palavra do Santo Padre:

 

“Aquela árvore tinha feito tanto mal e esta árvore nos leva a salvação, à saúde. Perdoa esse mau. Este é o percurso da história do homem: um caminho para encontrar Jesus Cristo Redentor, que dá sua vida por amor. Com efeito, Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por meio Dele. Esta árvore da Cruz nos salva, salva a todos nós, das consequências daquela outra árvore, onde começou a autossuficiência, o orgulho, a soberba de querermos nós conhecer tudo, segundo nossa mentalidade, segundo nossos critérios, e também segundo essa presunção de ser e de chegar a ser os únicos seres do mundo. Esta é a história do homem: de uma árvore a outra…

 

Deus faz este percurso por amor! Não há outra explicação: só o amor faz estas coisas. Hoje olhamos a Cruz, história do homem e história de Deus. Olhamos esta Cruz, onde se pode provar esse mel de aloé, esse mel amargo, essa doçura amarga do sacrifício de Jesus. Mas este mistério é tão grande e nós sozinhos não podemos ver bem este mistério, nem tanto para compreender, sim, compreender…, mas sim para sentir profundamente a salvação deste mistério. Acima de tudo o mistério da Cruz. Só se pode compreender um pouquinho de joelhos, na oração, mas também através das lágrimas: são as lágrimas as que nos aproximam deste mistério…

 

Sem chorar, chorar no coração jamais se poderá compreender este mistério…é o pranto do arrependido, o pranto do irmão e da irmã que veem tantas misérias humanas e as contemplam em Jesus, mas de joelhos e chorando, e jamais sozinhos, jamais sozinhos!..

 

Para entrar neste mistério, que não é um labirinto mas que se parece um pouco, sempre temos necessidade da Mãe, da mão da mamãe. Que Ela, Maria, faça-nos sentir como é grande e quão humilde é este mistério; quão doce como o mel e quão amargo como o aloé. Que seja Ela quem nos acompanhe neste caminho, que nenhum outro pode fazer senão nós mesmos. Cada um deve fazê-lo! Com a mamãe, chorando e de joelhos».

Papa Francisco. Homilia de 14 de setembro de 2013.

 

4 TRECHOS DO SERMÃO DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA[13]:

 

«Há dois gêneros de cruzes neste mundo: uma cruz material e outra espiritual. A cruz material, é aquele sagrado lenho em que Cristo, Salvador nosso, obrou os mistérios divinos da redenção do gênero humano. A cruz espiritual é a mortificação interior e exterior do corpo e alma, com que os verdadeiros cristãos, e particularmente os que professamos vida religiosa, crucificam suas paixões e apetites. Desta segunda cruz falava S. Paulo, quando disse: Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências (Gal. 5, 24) – e da mesma cruz falou Cristo naquela advertência que deu a todos: Se alguém quiser vir após mim, tome a sua cruz, e siga-me (Mt. 16, 24; Mc. 8, 34).

Estas duas cruzes, mesmo sendo tão diferentes, ambas são instrumentos de nossa redenção, porque, para um homem se salvar, não bastam só os merecimentos de Cristo, são necessários também merecimentos próprios. Na cruz material temos os merecimentos de Cristo, na cruz espiritual temos os merecimentos nossos. A cruz material foi instrumento da redenção de todos, quanto à suficiência; a cruz espiritual é instrumento da redenção de cada um, quanto à eficácia. Donde se segue que, em certa maneira, importa mais para a salvação a nossa cruz que a cruz de Cristo, porque sem a cruz de Cristo ninguém se pode salvar, mas com a nossa cruz ninguém se pode perder. Depois de Cristo morrer na cruz por amor de nós, muitos se perdem; mas os que tomam a sua cruz em seguimento perseverante de Cristo, todos se salvam».

«A cruz da religião, ainda que tão pesada, nenhum peso tem, porque, como a cruz se leva por Cristo e com Cristo, uma parte do peso alivia a companhia, e a outra parte alivia a causa».

«É mais leve a cruz da religião que a do mundo, porque maior cativeiro é estar sujeito à vontade própria que à alheia. O povo de Israel pecou, não querendo obedecer a Deus; Deus o castiga, e diz: “Meu povo não ouviu a minha voz, Israel não me quis obedecer” – Expressamente disse a Davi: “Por isso, os abandonei à dureza de seus corações” (Sl 80, 12-13). – Mas Senhor, que sentença é esta? Os homens de nenhuma coisa gostam mais que de fazer sua vontade; e com nenhuma coisa Vos ofendem mais, que em não fazer a Vossa: pois, se estes homens Vos ofenderam, e não quiseram fazer Vossa vontade, como lhes permitis por isso que façam a sua? É isto prêmio ou castigo? Prêmio não, porque não se dá prêmio por culpas. Castigo parece que não, porque não se dão gostos por penas. Então, que é isto?

O maior tirano que há no mundo é a vontade de cada um de nós. Os tiranos atormentam por fora, este tirano aflige por dentro. Daqui se argúi que, quando Deus quer dar um castigo, entrega o homem nas mãos da sua própria vontade».

«O religioso está livre de toda a vontade humana: da própria, porque a sua vontade é a do prelado; da alheia, porque a vontade do prelado é de Deus. Assim o religioso não está sujeito à vontade humana, mas à divina. E estando o religioso sujeito só à vontade de Deus, que se segue? Segue-se que, em prêmio de despir-se de sua vontade, a está sempre fazendo. Não é paradoxo, mas verdade clara. Que remédio há para um homem fazer sempre sua vontade? O remédio é querer o que Deus quer; e se eu quero o que Deus quer, sempre faço minha vontade. Este é o prêmio dos verdadeiros religiosos, no qual a sua cruz leva muita vantagem à do mundo porque na cruz do mundo vivem os homens à sua vontade, a qual em muitas coisas não conseguem, e por isso andam todos descontentes; na cruz da religião em tudo se faz a vontade do religioso, porque é força que em tudo se faça a vontade de Deus, com quem ele tem unida a sua».

«E, pois, a Cruz de Cristo, ainda que no exterior estreita e pesada, é tão larga pela causa e tão leve pela companhia, atemos nossos corações a esta Cruz, como prisioneiros do carro de seu maior triunfo. Seja esta exaltação a do instrumento sagrado, com que nos remiu Cristo, para que, em seguimento de suas penas, seja este desterro meio para que cheguemos a gozar suas glórias.»

 

V CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA

  1.  No decorrer da sua história, Israel pôde descobrir que Deus só tinha uma razão para Se lhe ter revelado e o ter escolhido, de entre todos os povos, para ser o seu povo: o seu amor gratuito. E Israel compreendeu, graças aos seus profetas, que foi também por amor que Deus não deixou de o salvar e de lhe perdoar a sua infidelidade e os seus pecados.
  2.  O amor de Deus para com Israel é comparado ao amor dum pai para com o seu filho. Este amor é mais forte que o de uma mãe para com os seus filhos. Deus ama o seu povo, mais que um esposo a sua bem-amada; este amor vencerá mesmo as piores infidelidades; e chegará ao mais precioso de todos os dons: «Deus amou de tal maneira o mundo, que lhe entregou o seu Filho Único» (Jo 3, 16).
  3.  O amor de Deus é «eterno» (Is 54, 8): «Ainda que as montanhas se desloquem e vacilem as colinas, o meu amor não te abandonará» (Is 54, 10). «Amei-te com amor eterno: por isso, guardei o meu favor para contigo» (Jr 31, 3).
  4.  São João irá ainda mais longe, ao afirmar: «Deus é Amor» (1 Jo 4, 8, 16): a própria essência de Deus é Amor. Ao enviar, na plenitude dos tempos, o seu Filho único e o Espírito de Amor, Deus revela o seu segredo mais íntimo “: Ele próprio é eternamente permuta de amor: Pai, Filho e Espírito Santo; e destinou-nos a tomar parte nessa comunhão.
  5.  Entre as autoridades religiosas de Jerusalém, não somente se encontravam o fariseu Nicodemos e o notável José de Arimateia, discípulos ocultos de Jesus, mas também, durante muito tempo, houve dissensões a respeito d’Ele ao ponto de, na própria véspera da paixão, João poder dizer deles que «um bom número acreditou nEle», embora de modo assaz imperfeito (Jo 12, 42); o que não é nada de admirar, tendo-se presente que, no dia seguinte ao de Pentecostes, «um grande número de sacerdotes se submetia à fé»(At 6, 7) e «alguns homens do partido dos fariseus tinham abraçado a fé» (At 15, 5), de tal modo que São Tiago podia dizer a São Paulo que «muitos milhares entre os judeus abraçaram a fé e todos têm zelo pela Lei» (At 21, 20).
  6.  As autoridades religiosas de Jerusalém não foram unânimes na atitude a adotar a respeito de Jesus. Os fariseus ameaçaram de excomunhão aqueles que O seguissem. Aos que temiam que «todos acreditassem nEle e os romanos viessem destruir o templo e a nação» (Jo 11, 48), o sumo sacerdote Caifás propôs, profetizando: «E do vosso interesse que morra um só homem pelo povo e não pereça a nação inteira» (Jo 11, 50). O Sinédrio, tendo declarado Jesus «réu de morte» como blasfemo, mas tendo perdido o direito de condenar à morte fosse quem fosse, entregou Jesus aos romanos, acusando-O de revolta política — o que O colocava em pé de igualdade com Barrabás, acusado de «sedição» (Lc 23, 19). São também de carácter político as ameaças que os sumos-sacerdotes fazem a Pilatos, pressionando-o a condenar Jesus à morte.

OS JUDEUS NÃO SÃO COLETIVAMENTE RESPONSÁVEIS PELA MORTE DE JESUS

  1.  Tendo em conta a complexidade histórica do processo de Jesus, manifestada nas narrativas evangélicas, e qualquer que tenha sido o pecado pessoal dos intervenientes no processo (Judas, o Sinédrio, Pilatos), que só Deus conhece, não se pode atribuir a responsabilidade do mesmo ao conjunto dos judeus de Jerusalém, apesar da gritaria de uma multidão manipulada e das censuras globais contidas nos apelos à conversão, depois de Pentecostes. O próprio Jesus, perdoando na cruz e Pedro a seu exemplo, apelaram para «a ignorância» dos judeus de Jerusalém e mesmo dos seus chefes. Menos ainda é possível estender a responsabilidade ao conjunto dos judeus no espaço e no tempo, a partir do grito do povo: «Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos»(Mt 27, 25), que é uma fórmula de ratificação (Cf. At 5, 28; 18, 6).

Por isso, a Igreja declarou no II Concílio do Vaticano: «Não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na sua paixão se perpetrou. […] Nem por isso os judeus devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da Sagrada Escritura» (Nostra aetate, 4: AAS 58 (1966) 743).

TODOS OS PECADORES FORAM AUTORES DA PAIXÃO DE CRISTO

  1.  A Igreja, no magistério da sua fé e no testemunho dos seus santos, nunca esqueceu que «os pecadores é que foram os autores, e como que os instrumentos, de todos os sofrimentos que o divino Redentor suportou». Partindo do princípio de que os nossos pecados atingem Cristo em pessoa, a Igreja não hesita em imputar aos cristãos a mais grave responsabilidade no suplício de Jesus, responsabilidade que eles muitas vezes imputaram unicamente aos judeus:

«Devemos ter como culpados deste horrível crime os que continuam a recair nos seus pecados. Porque foram os nossos crimes que fizeram nosso Senhor Jesus Cristo suportar o suplício da cruz, é evidente que aqueles que mergulham na desordem e no mal crucificam de novo em seu coração, tanto quanto deles depende, o Filho de Deus, pelos seus pecados, expondo-O à ignomínia. E temos de reconhecer: o nosso crime, neste caso, é maior que o dos judeus. Porque eles, como afirma o Apóstolo, «se tivessem conhecido a Sabedoria de Deus, não leriam crucificado o Senhor da glória» (1 Cor 2, 8); ao passo que nós, pelo contrário, fazemos profissão de O conhecer: e, quando O renegamos pelos nossos atos, de certo modo levantamos contra Ele as nossas mãos assassinas» (Catechismus Romanus 1, 5, 11, p. 64.).

«Não foram os demônios que O pregaram na cruz, mas tu com eles O crucificaste, e ainda agora O crucificas quando te deleitas nos vícios e pecados» (São Francisco de Assis).

II. A morte redentora de Cristo no desígnio divino de salvação

«JESUS ENTREGUE, SEGUNDO O DESÍGNIO DETERMINADO DE DEUS»

  1.  A morte violenta de Jesus não foi fruto do acaso, nem coincidência infeliz de circunstâncias várias. Faz parte do mistério do desígnio de Deus, como Pedro explica aos judeus de Jerusalém, logo no seu primeiro discurso no dia de Pentecostes: «Depois de entregue, segundo o desígnio determinado e a previsão de Deus» (At 2, 23). Esta linguagem bíblica não significa que os que «entregaram Jesus» foram simples atores passivos dum drama previamente escrito por Deus.
  2.  A Deus, todos os momentos do tempo estão presentes na sua atualidade. Por isso, Ele estabelece o seu desígnio eterno de «predestinação», incluindo nele a resposta livre de cada homem à sua graça: «Na verdade, Herodes e Pôncio Pilatos uniram-se nesta cidade, com as nações pagãs e os povos de Israel, contra o vosso santo Servo Jesus, a quem ungistes. Cumpriram assim tudo o que o vosso poder e os vossos desígnios tinham de antemão decidido que se realizasse» (At 4, 27-28). Deus permitiu os atos resultantes da sua cegueira, como fim de levar a cabo o seu plano de salvação (Cf At 3, 17-18).

«MORTO PELOS NOSSOS PECADOS, SEGUNDO AS ESCRITURAS»

  1.  Este plano divino de salvação, pela entrega à morte do «Servo, o Justo» (Is 53,11), tinha sido de antemão anunciado na Escritura como um mistério de redenção universal, quer dizer, de resgate que liberta os homens da escravidão do pecado. São Paulo professa, numa confissão de fé que diz ter «recebido», que «Cristo morreu pelos nossos pecados segundo as Escrituras» (1 Cor 15, 3). A morte redentora de Jesus deu cumprimento sobretudo à profecia do Servo sofredor (Cf Is 53, 7-8 e At 8, 32-35). O próprio Jesus apresentou o sentido da sua vida e da sua morte à luz do Servo sofredor (Cf Mt 20,28). Após a sua ressurreição, deu esta interpretação das Escrituras aos discípulos de Emaús e depois aos próprios Apóstolos.

«DEUS O FEZ PECADO POR CAUSA DE NÓS»

  1.  Consequentemente, Pedro pôde formular assim a fé apostólica no plano divino da salvação: «fostes resgatados da vida fútil herdada dos vossos pais, pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro sem defeito nem mancha, predestinado antes da criação do mundo e manifestado nos últimos tempos por nossa causa» (1 Pe1, 18-20). Os pecados dos homens, que se seguiram ao pecado original, foram castigados com a morte. Enviando o seu próprio Filho na condição de escravo (cf Fl 2,7), que era a de uma humanidade decaída e votada à morte por causa do pecado, «a Cristo, que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por amor de nós, para que, em Cristo, nos tornássemos justos aos olhos de Deus» (2 Cor 5, 21).
  2.  Jesus não conheceu a reprovação como se tivesse pecado pessoalmente. Mas, no amor redentor que constantemente O unia ao Pai, assumiu-nos no afastamento do nosso pecado em relação a Deus a ponto de, na cruz, poder dizer em nosso nome: «Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?» (Mc 15, 34). Tendo-O feito solidário conosco, pecadores, «Deus não poupou o seu próprio Filho, mas entregou-O para morrer por nós todos» (Rm 8, 32), para que fôssemos «reconciliados com Ele pela morte do seu Filho» (Rm 5, 10).

DEUS TOMA A INICIATIVA DO AMOR REDENTOR UNIVERSAL

  1.  Entregando o seu Filho pelos nossos pecados, Deus manifesta que o seu plano sobre nós é um desígnio de amor benevolente, independente de qualquer mérito da nossa parte: «Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele quem nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10). «Deus prova assim o seu amor para conosco: Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores»(Rm 5, 8).
  2.  Este amor é sem exclusão. Jesus lembrou-o ao terminar a parábola da ovelha perdida: «Assim, não é da vontade do meu Pai, que está nos céus, que se perca um só destes pequeninos» (Mt 18, 14). E afirma «dar a Sua vida em resgate pela multidão» (Mt 20, 28). Esta última expressão não é restritiva: simplesmente contrapõe o conjunto da humanidade à pessoa única do redentor, que Se entrega para a salvar. No seguimento dos Apóstolos, a Igreja ensina que Cristo morreu por todos os homens, sem exceção: «Não há, não houve, nem haverá nenhum homem pelo qual Cristo não tenha sofrido».

 Cristo ofereceu-Se ao Pai pelos nossos pecados

TODA A VIDA DE CRISTO É OFERENDA AO PAI

  1.  O Filho de Deus, «descido do céu, não para fazer a sua vontade mas a do seu Pai, que O enviou», «diz, ao entrar no mundo: […] Eis-me aqui, […] ó Deus, para fazer a tua vontade. […] E em virtude dessa mesma vontade, é que nós fomos santificados, pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, feita de uma vez para sempre» (Heb 10, 5-10). Desde o primeiro instante da sua Encarnação, o Filho faz seu o plano divino de salvação, no desempenho da sua missão redentora: «O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra» (Jo 4, 34). O sacrifício de Jesus «pelos pecados do mundo inteiro» (1 Jo 2, 2) é a expressão da sua comunhão amorosa com o Pai: «O Pai ama-Me, porque Eu dou a minha vida» (Jo 10, 17). «O mundo tem de saber que amo o Pai e procedo como o Pai Me ordenou»(Jo 14, 31).
  2.  Este desejo de fazer seu o plano do amor de redenção do seu Pai, anima toda a vida de Jesus. A sua paixão redentora é a razão de ser da Encarnação: «Pai, salva-Me desta hora! Mas por causa disto, é que Eu cheguei a esta hora» (Jo 12, 27). «O cálice que o Pai Me deu, não havia de bebê-lo?» (Jo 18, 11). E ainda na cruz, antes de «tudo estar consumado» (Jo 19, 30), diz: «Tenho sede» (Jo 19, 28).

«O CORDEIRO QUE TIRA O PECADO DO MUNDO»

  1.  Depois de ter aceitado dar-Lhe o batismo como aos pecadores, João Batista viu e mostrou em Jesus o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo». Manifestou deste modo que Jesus é, ao mesmo tempo, o Servo sofredor, que Se deixa levar ao matadouro sem abrir a boca, carregando os pecados das multidões, e o cordeiro pascal, símbolo da redenção de Israel na primeira Páscoa, Toda a vida de Cristo manifesta a sua missão: «servir e dar a vida como resgate pela multidão».

JESUS PARTILHA LIVREMENTE O AMOR REDENTOR DO PAI

  1.  Ao partilhar, no seu coração humano, o amor do Pai para com os homens, Jesus «amou-os até ao fim» (Jo 13, 1), «pois não há maior amor do que dar a vida por aqueles que se ama» (Jo 15, 13). Assim, no sofrimento e na morte, a sua humanidade tornou-se instrumento livre e perfeito do seu amor divino, que quer a salvação dos homens. Com efeito, Ele aceitou livremente a sua paixão e morte por amor do Pai e dos homens a quem o Pai quer salvar: «Ninguém Me tira a vida. Sou Eu que a dou espontaneamente» (Jo 10, 18). Daí, a liberdade soberana do Filho de Deus, quando Ele próprio vai ao encontro da morte.

NA CEIA, JESUS ANTECIPOU A OBLAÇÃO LIVRE DA SUA VIDA

  1.  Jesus exprimiu de modo supremo a oblação livre de Si mesmo na refeição que tornou com os doze Apóstolos, na «noite em que foi entregue» (1 Cor 11, 23). Na véspera da sua paixão, quando ainda era livre, Jesus fez desta última Ceia com os Apóstolos o memorial da sua oblação voluntária ao Pai para a salvação dos homens: «Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós» (Lc 22, 19). «Isto é o meu “Sangue da Aliança”, que vai ser derramado por uma multidão, para remissão dos pecados» (Mt 26, 28).
  2.  A Eucaristia, que neste momento instituiu, será o «memorial» do seu sacrifício. Jesus incluiu os Apóstolos na sua própria oferenda e pediu-lhes que a perpetuassem (Cf Lc 22,19). Desse modo, instituiu os Apóstolos como sacerdotes da Nova Aliança: «Eu consagro-me por eles, para que também eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 19).

A AGONIA NO GETSÉMANI

  1.  O cálice da Nova Aliança, que Jesus antecipou na Ceia, oferecendo-Se a Si mesmo, aceita-o em seguida das mãos do Pai, na agonia no Getsémani, fazendo-Se «obediente até a morte» (Fl 2, 8). Na sua oração, Jesus diz: «Meu Pai, se é possível, que se afaste de Mim este cálice […]» (Mt 26, 39). Exprime desse modo o horror que a morte representa para a sua natureza humana. Com efeito, esta, como a nossa, está destinada à vida eterna. Mas, diferentemente da nossa, é perfeitamente isenta do pecado que causa a morte. E, sobretudo, é assumida pela pessoa divina do «Príncipe da Vida», do «Vivente». Aceitando, com a sua vontade humana, que se faça a vontade do Pai aceita a sua morte enquanto redentora, para «suportar os nossos pecados no seu corpo, no madeiro da cruz» (1 Pe 2, 24).

A MORTE DE CRISTO É O SACRIFÍCIO ÚNICO E DEFINITIVO

  1.  A morte de Cristo é, ao mesmo tempo, o sacrifício pascal que realiza a redenção definitiva dos homens por meio do «Cordeiro que tira o pecado do mundo», e o sacrifício da Nova Aliança que restabelece a comunhão entre o homem e Deus, reconciliando-o com Ele pelo «sangue derramado pela multidão, para a remissão dos pecados».
  2.  Este sacrifício de Cristo é único, leva à perfeição e ultrapassa todos os sacrifícios. Ele é primeiro um dom do próprio Deus Pai: é o Pai que entrega o seu Filho para nos reconciliar consigo. Ao mesmo tempo, é oblação do Filho de Deus feito homem, que livremente e por amor oferece a sua vida ao Pai pelo Espírito Santo para reparar a nossa desobediência.

JESUS SUBSTITUI A NOSSA DESOBEDIÊNCIA PELA SUA OBEDIÊNCIA

  1.  «Como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos» (Rm 5, 19). Pela sua obediência até à morte, Jesus realizou a ação substitutiva do Servo sofredor, que oferece a sua vida como sacrifício de expiação, ao carregar com o pecado das multidões, que justifica carregando Ele próprio com as suas faltas. Jesus reparou as nossas faltas e satisfez ao Pai pelos nossos pecados.

NA CRUZ, JESUS CONSUMA O SEU SACRIFÍCIO

  1.  É o «amor até ao fim» que confere ao sacrifício de Cristo o valor de redenção e reparação, de expiação e satisfação. Ele conheceu-nos e amou-nos a todos no oferecimento da sua vida. «O amor de Cristo nos compele, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). Nenhum homem, ainda que fosse o mais santo, estava em condições de tornar sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sacrifício por todos. A existência, em Cristo, da pessoa divina do Filho, que ultrapassa e ao mesmo tempo abrange todas as pessoas humanas e O constitui cabeça de toda a humanidade, é que torna possível o seu sacrifício redentor por todos.
  2.  «Sua sanctissima passione in ligno crucis nobis justificationem meruit – Pela sua santíssima paixão no madeiro da cruz, Ele mereceu-nos a justificação» – ensina o Concílio de Trento, sublinhando o carácter único do sacrifício de Cristo como fonte de salvação eterna. E a Igreja venera a Cruz cantando: «O crux, ave, spes unica! – Salve, ó cruz, única esperança!

A NOSSA PARTICIPAÇÃO NO SACRIFÍCIO DE CRISTO

  1.  A cruz é o único sacrifício de Cristo, mediador único entre Deus e os homens. Mas porque, na sua pessoa divina encarnada «Ele Se uniu, de certo modo, a cada homem», «a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal, por um modo só de Deus conhe­cido». Convida os discípulos a tomarem a sua cruz e a segui-Lo porque sofreu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigamos os seus passos. De fato, quer associar ao seu sacrifício redentor aqueles mesmos que são os primeiros beneficiários. Isto realiza-se, em sumo grau, em sua Mãe, associada, mais intimamente do que ninguém, ao mistério do seu sofrimento redentor ( Lc 2, 35):

Há uma só escada verdadeira fora do paraíso; fora da cruz, não há outra escada por onde se suba ao céu» (Sta Rosa de Lima).

 Resumindo:

  1.  «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras» (1 Cor 15, 3).
  2.  A nossa salvação procede da iniciativa amorosa de Deus em nosso favor, pois «foi Ele que nos amou a nós e enviou o seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10). «Foi Deus que, em Cristo, reconciliou consigo o mundo» (2 Cor 5, 19).
  3.  Jesus ofereceu-Se livremente para nossa salvação. Este dom, Ele significa-o e realiza-o, de antemão, durante a Última Ceia: «Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós» (Lc 22, 19).
  4.  Nisto consiste a redenção de Cristo: Ele «veio dar a sua vida em resgate pela multidão» (Mt 20, 28), quer dizer; veio «amar os seus até o fim» (Jo 13, 1), para que fossem libertados da má conduta herdada dos seus pais.

623. Pela sua obediência amorosa ao Pai, «até a morte de cruz» (Fl 2, 8), Jesus cumpriu a missão expiatória do Servo sofredor, que justifica as multidões, tomando sobre Si o peso das suas faltas (Is 53, 11).

— TEXTOS DA ESPIRITUALIDADE SODÁLITE

«Todos sabemos que a cruz era um terrível instrumento de martírio que constava de uma trave espetada verticalmente na terra, cruzada por outra horizontal, na qual se pregava ou amarrava o condenado. A morte pelo suplício da cruz era ignominiosa e ultrajante, e até um sinal de maldição. Mas quando o Senhor Jesus é executado por este meio de suplício, naquele atroz instrumento de tortura e morte, a cruz adquire uma relevância teológica singular e muda completamente seu sentido, como outras realidades que à luz da revelação são redefinidas. Jesus, pregado no madeiro, não é maldito, mas bendito. A própria cruz é transformada em sinal da reconciliação entre Deus e o ser humano, em sinal que nós, crentes, reverenciamos e veneramos, e que portamos sobre nossos peitos ou colocamos em nossos lares como manifestação de aderência ao Senhor Jesus, com a esperança de seguir seus passos para a Comunhão plena de Amor, isto é, para avançar pelos caminhos da virtude até a santidade.

«Costumo repetir que “não há cristianismo sem Cruz”, e o faço pela lição das Sagradas Escrituras que nos apresentam o caminho da Cruz como uma direção sem a qual não é possível a adesão plena a Jesus. Se quero viver autenticamente, devo seguir a direção da Cruz. Se quero viver, devo morrer ao que é morte, para assim poder viver o que é vida, da própria Vida. O processo ascético, a busca da alegria que permanece, a disciplina pessoal para alcançar a reta ordem interior, para responder à força da reconciliação que busca superar nossas inconsistências, rupturas e conflitos, a luta espiritual para cooperar com a graça, para ver-nos despojados do homem velho e revestidos do domem novo (cf Ef 4, 22-24) é uma aventura apaixonante. Mas é muito mais do que isso. É o caminho para a plenitude do ser humano, para sua paz, sua felicidade, para a santidade: a única Grande Aventura que realmente vale a pena ser vivida com todo ardor.

«Um cristão “açucarado”, ingênuo, melindroso, sem luta espiritual, não se encontra nas Santas Escrituras nem na vida dos santos que chegaram aos altares. ‘O combate da oração é inseparável do combate espiritual necessário para atuar habitualmente segundo o Espírito de Cristo: ora-se como se vive porque se vive como se ora[14]’. O cristianismo é um caminho robusto, que conta com nossa fraqueza. Precisamente por isso, não nos gloriemos de nossas próprias forças. (….) A paixão e Morte na Cruz dão cumprimento à missão do Senhor Jesus e manifestam a profusão de amor que nelas verte. O Senhor apela à liberdade de cada um de nós, convidando-nos para que nos deixemos tocar por esse amor que mana profusamente Dele, e que O sigamos. Sigamos Jesus pelo caminho do amor! »

 

Vivamos nosso Domingo ao longo da semana

 

1. Como é minha relação com a cruz que tenho que levar diariamente? Aceito-a com docilidade? Rebelo-me? É minha «escada para o céu», como dizia Santa Rosa de Lima?

 

2. Tomemos consciência daquelas pessoas que têm que aguentar situações muito mais difíceis do que a que nós vivemos. Peçamos pelos doentes abandonados, por aqueles que não têm um lar, pelas crianças que são abortadas, etc.

 

3. Diante das próximas eleições no Brasil, tenho pesquisado para conhecer bem as responsabilidades dos cargos em votação (presidente, senador, deputado federal, deputado estadual e governador) e escolher pessoas realmente aptas a desempenhá-las? Estudo as propostas e os antecedentes dos partidos e dos candidatos que, se eleitos, comandarão a vida no nosso país, para fazer a melhor escolha na urna? Ou acho que tudo isso é muito complicado e um “sacrifício muito grande” e deixo-me levar comodamente pelas opiniões dos outros e por subjetivismos?

[1] Ver também: “Porque há muitos por aí, de quem repetidas vezes vos tenho falado e agora o digo chorando, que se portam como inimigos da cruz de Cristo,” (Fl 3,18).

[2] Veneração: como culto religioso, é a reverência a uma pessoa (ou, em culto relativo a um objeto relacionado com ela), reconhecendo nela o efeito da graça de Deus, a quem em última instância se dirige o culto.

[3] O fato de mostrar-se de maneira solene aos fiéis costumava chamar-se de “exaltação”. Daí veio o nome da festa da Exaltação da Santa Cruz.

[4] Liturgia galicana – liturgia local usada no sul das Gálias (França) e que praticamente desapareceu na segunda metade do século VIII. Os poucos documentos que sobreviveram já estão romanizados, de maneira que é muito difícil rastrear os elementos originais.

[5] Invenção é entendida aqui como “Achado da Cruz”.

[6]Também Cades-Barne

[7] Abrasador: que abrasa. Reduzir a brasa, queimar.

[8] Ezequias foi rei de Judá do ano 716 aos 687 a.C. Sucedeu seu pai, o rei Acaz. Assim que subiu ao trono voltou a abrir o templo e o reparou. Organizou uma campanha nacional para destruir tudo o que tivesse a ver com o culto idolátrico. Rebelou-se contra os Assírios e se negou a pagar-lhes o tributo exigido. Adoeceu gravemente mas Deus escutou suas súplicas e concedeu-lhe mais 15 anos de vida.

[9] Recordemos que o grego e toda a cultura helênica tinham penetrado muito no mundo judeu depois das conquistas de Alexandre O Grande.

[10]Jo 3,2

[11]Jo 2,23

[12]Jo 20,28

[13] Pronunciado no Convento da Anunciada, em Lisboa, em 1645.

[14] CIC 2752

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