A Igreja como um Sacramento na Lumen Gentium – Craig Kinneberg

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O Concílio Vaticano II, na sua Constituição Dogmática Lumen Gentium, afirma que «a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano»[1]. Reconhecendo a importância de aprofundar na sua própria identidade, a Igreja, na sua tentativa de retornar às bases ou fundamentos da compreensão do que a Igreja seria exatamente, partindo de uma visão fundamentada sobre a Sagrada Escritura e Padres da Igreja. Desta maneira, a Igreja podia enriquecer profundamente o conhecimento que tinha de si mesma através dessa perspectiva.

O Sentido de ‘Sacramento’

Antes de entrar em uma explicação de como a Igreja é um sacramento e o que isso significa, é importante saber de onde a palavra “sacramento” vem e um breve resumo do significado da palavra. Como o Catecismo explica resumidamente, a palavra grega mysterion foi traduzida para o latim termo mysterion. usando duas palavras diferentes: mysterium e sacramentum. Logo depois, este seu segundo termo assumiu o significado de um sinal visível da realidade escondida da salvação, que foi indicada pelo termo mysterion. «A palavra latina sacramentum como uma descrição do acontecimento salvífico que se realiza no povo de Deus também tinha uma longa história antes que ela adquiriu seu significado presente no Concílio de Trento. A palavra … está conectada com sacrare ou consecrare, e o termo significa uma remoção legalmente válida e permanente de uma pessoa ou coisa da esfera da lei humana à da lei divina. Então, o juramento feito por um soldado no exército é um sacramentum »[2]. O primeiro padre da Igreja a dar ao termo latino sacramentum um conteúdo e significado Cristão foi Tertuliano, já que o uso em latim clássico tinha o significado de ” juramento “. Foi ele quem usou o termo com dois significados distintos, sendo um deles a noção de um juramento e outro o entendimento de sacramentum como “mistério”

A compreensão do sacramento sofreu um desenvolvimento significativo, aproximadamente 200 anos depois, com Santo Agostinho. «Para Agostinho, um sacramento é um sinal sagrado, mas ele diferencia entre o sinal e o conteúdo (res) do sinal. No que diz respeito aos sinais o mais  importante a considerar não é o que eles são, mas o que eles significam. Porém, para que um sinal possa comunicar algo diferente de seu próprio ser, ele deve ter alguma semelhança com aquilo ao que se refere»[3]. Como Tertuliano e outros Pais da Igreja primitiva entenderam, sacramentum refere-se, sobretudo, ao plano divino da salvação em sua realização histórica[4], e se este for o caso, então o sinal sagrado do qual Santo Agostinho fala é sinal da realidade escondida da salvação, percebida e presente em um sacramento. É precisamente através de sinais que o homem é capaz de alcançar o conhecimento do divino, da realidade do mistério, já que é incapaz de fazê-lo de forma direta, sem o auxílio de algo visível ou sensível.

Considerando estas explicações e o aprofundamento na compreensão da palavra ‘sacramento’, a Igreja começou a entender o próprio Cristo como um sacramentum, o sacramento de Deus. Santo Agostinho explica que «o mistério (ou sacramento) de Deus não é outro senão Cristo»[5]. Henri de Lubac apresenta esta ideia ao dizer que aquilo que é sacramental «não é um entremeio, mas sim um mediador; não é algo que isola, uma parte da outra, mas que quer ligar os dois termos. Não coloca uma distância entre eles; pelo contrário, os une ao fazer presente o que ele evoca»[6]. Neste sentido nós podemos entender Cristo como o verdadeiro sacramento de Deus, porque é unicamente através de Cristo que o homem é capaz de entrar em uma plena comunhão e relação com Deus. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, ao assumir a carne humana e tornar-se homem, se torna a ponte entre o homem e Deus, algo que é apresentado de maneira clara no Evangelho de São João: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim»[7]. Ele é o sinal visível da realidade invisível da salvação e que foi entendido sob o termosacramentum na teologia latina, como também o próprio instrumento de salvação, a porta a través da qual nós entramos em vistas a obter a salvação.

 

 

A Igreja como um Sacramento

Da mesma maneira que Cristo é o sacramento de Deus, entende-se que a Igreja é, verdadeiramente, um sacramento, pois é nela e através dela que Cristo está presente no mundo, sendo, portanto, a única forma pela qual um homem pode entrar na plenitude da união com Cristo e conhecer a Deus. Para tornar mais claro, Lubac diz que “ninguém… atingirá um conhecimento do Pai, que vá dispensá-lo, desse ponto em diante, de passar por aquele que vai, sempre e por todos, ser o Caminho e a Imagem do Deus invisível. E o mesmo vale para a Igreja. Todo o seu fim é para nos mostrar Cristo, levar-nos a ele, e transmitir a sua graça para nós… ela existe somente para nos colocar em relação com ele” [8]. Entendendo isso mais claramente, nós podemos agora entrar na Lumen Gentium com uma nova luz que é derramada sobre o sentido que ela à Igreja como um sacramento.

Por causa desse retorno para a compreensão original e mais ampla de sacramentum, que está presente desde os primeiros séculos do Cristianismo, o Concílio foi capaz de se referir a Igreja como um sacramento em três ocasiões na Lumen Gentium[9]. Número 9 da Constituição diz que: «Aos que se voltam com fé para Cristo, autor de salvação e princípio de unidade e de paz, Deus chamou-os e constituiu-os em Igreja, a fim de que ela seja para todos e cada um sacramento visível desta unidade salutar»[10]. Esta compreensão da Igreja como o ‘sacramento visível desta unidade salutar’ que LG 9 menciona, vem de uma citação direta do Santo Cipriano de Cartago, quem no século III foi outro Padre da Igreja que falava frequentemente da Igreja como um sacramento. Em sua carta 64, ele diz muito claramente que “a Igreja é o inquebrável sacramento da unidade” [sacramentum unitatis] [11]. É também através desta compreensão da Igreja como sacramentum unitatis que o Concílio Vaticano Segundo na Lumen Gentium 1 é capaz de dizer que a Igreja é, de fato, um sinal e instrumento, o sacramento, da unidade entre Deus e o homem, e devido essa unidade que é o principal fim da Igreja, a unidade entre todos os homens.

Uma das preocupações que o Concílio Vaticano II teve ao definir a Igreja como sacramento foi a possibilidade de gerar confusão entre a Igreja como sacramento e os sete sacramentos da Igreja. Seria incorreto pensar que de alguma maneira o Concílio teria criado um oitavo sacramento, tornando-o equivalente aos sete sacramentos instituídos por Cristo. A maneira correta de compreender esta realidade é que os sete sacramentos tem sua fundação e fonte na Igreja, e que sem a Igreja estes sacramentos não poderiam existir. Michael Schmaus afirma que a Igreja é a «fonte da qual emergem os sete sacramentos particulares, de acordo com a vontade de Jesus Cristo»[12]. Assim como os sete sacramentos da Igreja foram instituídos por Cristo como «sinais eficazes da graça…através da qual a vida divina é dispensada a nós»[13], a própria Igreja foi instituída por Cristo para ser uma instituição humana e divina através da qual todos os homens são salvos. Cristo instituiu os sete sacramentos e desejou que a Igreja fosse a única distribuidora da graça destes sacramentos. Também é importante compreender que a sacramentalidade da Igreja é manifestada em e através da celebração dos sacramentos. Como colocado por Schmaus: «enquanto o mundo durar ela (a Igreja) é a presença de Deus trabalhando poderosamente e convidando a humanidade a dialogar com Ele, no interior de uma sociedade que é estruturada de maneira hierárquica. Isto expressa a característica básica da sacramentalidade da Igreja: todos os eventos sacramentais na Igreja são uma expressão e concretização desta característica básica»[14].

Entender a Igreja como sacramento é de importância crucial para os católicos de hoje. Quando a visão da Igreja como uma mera instituição humana, um grupo hierárquico de pessoas, ou um corpo político é tão proeminente, a compreensão desta realidade misteriosa, porém verdadeira, passa a ser de suma importância. Através desta compreensão aprofundada, os católicos poderão crescer na sua fé, juntamente com um autentico amor pela Igreja, algo altamente necessário em nosso mundo cada vez mais secularizado e cultura cada vez mais anticatólica.



[1] Lumen Gentium, 1.

[2] Michael Schmaus, Dogma: The Church as Sacrament, 27.

[3] Ibid, 27

[4] Juan Antonio Gil Tamayo, La Iglesia como Sacramentum Unitatis en Cipriano de Cartago, 349. Free translation

[5] Gérard Philips, La Iglesia y su misterio en el Concilio Vaticano II, 98. Free translation

[6] Henri de Lubac, The Splendor of the Church, 202.

[7] Jn 14,6

[8] Lubac, 203.

[9] LG 1, 9, 48

[10] LG 9

[11]  S. Cyprian, Epist. 64, 4: PL 3, 1017.

[12] Schmaus, Dogma: The Church as Sacrament, 6.

[13] Catechism of the Catholic Church, 1131.

[14] Schmaus, Dogma: The Church as Sacrament, 6.

Craig Kinneberg
Nasceu na cidade de Spokane, no estado do Washington, nos Estados Unidos, e se mudou a Phoenix, Arizona quando tinha 13 anos. Aos 20 anos de idade, ingressou no Sodalício de Vida Cristã e morou no Peru durante 3 anos para sua formação inicial. Em 2013, se mudou a São Paulo, Brasil, onde atualmente reside, ajudando na missão apostólica da Família Sodálite, especialmente fazendo trabalho pastoral com jovens. Completou os estudos filosóficos, e agora estuda teologia, em vistas ao sacerdócio.

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