Caminho para Deus 237 – A fé se opõe à ciência?

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Existe um conflito irreconciliável entre a fé e a ciência?  Realmente se opõem?  Certamente muitas vezes escutamos ou nos fizemos esta pergunta.  Basta seguir as informações dos jornais ou acadêmicas para notar como se insiste em que a atitude “correta” para um cientista é descartar a “hipótese de Deus”.

Para muitos hoje a fé e a ciência são fundamentalmente incompatíveis.  «Na cultura contemporânea — diz o Papa Francisco — tende-se frequentemente a aceitar como verdade só a verdade tecnológica: é verdade aquilo que o homem consegue construir e medir com sua ciência; é verdade porque funciona e assim torna mais cômoda e fácil a vida.  Hoje parece que esta é a única verdade certa, a única que se pode compartilhar com os outros, a única sobre a que é possível debater e comprometer-se juntos»[1].

A Igreja, entretanto, tem sustentado de diversas maneiras que uma oposição entre a fé e a ciência é falsa, e pelo contrário destaca «a harmonia existente entre a verdade científica e a verdade revelada»[2].  Em nosso tempo, escreveu o Papa Bento XVI «a fé está submetida, mais que no passado, a uma série de questionamentos que provêm de uma mudança de mentalidade que, sobretudo hoje, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas.  Mas a Igreja nunca teve medo de mostrar como entre a fé e a verdadeira ciência não pode haver conflito algum, porque ambas, embora por caminhos distintos, tendem à verdade»[3].

Olhemos a história

As palavras dos Papas Francisco e Bento XVI não são uma novidade no ensinamento da Igreja.  Muitos homens da Igreja se apoiaram na ciência ou realizaram grandes contribuições neste acampo sem deixar de serem homens de fé.  Poucos conhecem, por exemplo, São Isidoro de Sevilha, que no século VII escreveu uma obra intitulada Etimologias, considerada a primeira enciclopédia da cultura ocidental com temas como medicina, geografia e arquitetura, entre outros.  Menos, possivelmente, conhecem o Papa Silvestre II — Gerberto de Aurillac — (938-1003 D.C.), conhecido no mundo científico por ter introduzido no ocidente o sistema métrico decimal e o zero.

Ao chegar ao Renascimento, o nome de Nicolau Copérnico — tão importante no mundo da astronomia — é o nome de um padre polonês.  Neste mesmo âmbito um dos centros astronômicos mais antigos do mundo, o Observatório Vaticano, foi fundado pelo Papa Leão XIII em 1891, e continua sendo um dos institutos científicos mais prestigiosos e rigorosos do mundo.  Em outro campo distinto podemos recordar também que as bases da genética moderna se encontram nos trabalhos de Gregor Mendel (1823-1884), um monge agostiniano.  No século XX, o abade George Lemaître (1894-1966), sacerdote belga, foi o primeiro a propor a hipótese da Grande Explosão (Big Bang), como uma possível explicação da origem temporal do universo.

Estes são apenas alguns exemplos para ressaltar que para o crente não há uma oposição entre a fé e a ciência quando esta é retamente entendida e não assume um papel totalizador como querem muitos “cientistas” modernos.  Quiçá estejamos acostumados a um tipo de ciência que levou à exclusão de Deus porque se entende como um tipo de conhecimento que só aceita o mensurável.  Para pessoas como Copérnico, Mendel ou Lemaître, Deus, imensamente inteligente, criou o mundo dando-lhe uma ordem natural segundo leis, uma ordem que o homem é capaz de descobrir utilizando sua razão.  Neste sentido, foram pessoas de um sentir e de uma aproximação autenticamente cristãos que contribuíram para pôr os pilares da ciência moderna.

Harmonia entre fé e ciência

Os historiadores sempre estranharam que a ciência experimental não tenha se desenvolvido muito em culturas tão importantes como a Grécia, Roma ou mais ainda a China.  Ela recém ganhou um impulso definitivo na Europa, cujas raízes são cristãs.  Nenhuma outra cultura, nem sequer a antiga Grécia, que alcançou conquistas admiráveis na matemática, produziu algo comparável à ciência moderna.  Para que esta surja, é necessária a convicção de que o mundo é racional, está impregnado de uma racionalidade (logos) e não de caos, que a matéria é boa, e se comporta segundo leis estáveis, sem estar sujeita ao capricho de espíritos ou demônios.  Esta perspectiva é própria do cristianismo que foi purificando muitas visões erradas a respeito de Deus e do mundo.

De fato, a partir da reverência diante da maravilha que nos rodeia, as perguntas sobre o Universo podem nos aproximar de Deus.  Todas as pessoas contemplam o firmamento, cuja delicada ordem e entrelaçamento dos astros permitem o desenvolvimento da existência em nosso planeta, particularmente da vida inteligente.  Comprovamos que a matéria se comporta de maneira ordenada e que está regida por leis físicas.  Isso nos fala de uma ordem e causalidade que tornam possível a pesquisa científica.  Tal ordenamento provém de uma inteligência maior, sublime, enunciada pela teologia natural ou teodiceia, estudada por filósofos precristãos como Platão e Aristóteles, e em quem a teologia e a revelação judeu-cristã reconhecem Deus.

A reflexão sobre a vida humana nos conduz a duvidar radicalmente de que os seres humanos sejam produto da casualidade evolutiva, inclinando-nos a acreditar, em vez disso, em um Deus criador.  Todo o entrelaçado de possibilidades cósmicas harmonizadas na vida humana e na criação de maneira tão maravilhosa nos conduzem a esse Ser bom, inteligente e ordenador.  Os batimentos cardíacos e a respiração, os finos processos cerebrais e neurológicos, nosso sistema digestivo, a integração entre o espírito, a mente e o corpo, etc., desafiam fortemente a possibilidade de que sejamos fruto do caos evolutivo.  Quando se sustenta que a vida inteligente é resultado da casualidade se relativiza o propósito da existência humana, despojando o mundo de um sentido inerente[4] para contribuir com a vida.

Fé e razão: duas asas para alcançar a verdade

A Igreja descreve a fé e a razão como «as duas asas com as quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade»[5].  O Papa Bento XVI costumava repetir que a verdade não deve temer a verdade. Apesar de um passado onde ocorreram inegáveis tensões por episódios de mútua incompreensão, a Igreja não teme as descobertas científicas.  Bento XVI, pelo contrário, fazia referência à reciprocidade fecunda entre a ciência e a fé»[6].  Ambas compartilham o intenso impulso de busca, indagando e perguntando-se sobre o “como?” e o “por que?”, respondendo cada uma a partir de seus âmbitos próprios.  Ambas partem também de um desejo que nos impulsiona a olhar além do visível e do mensurável, para compreender o mundo que nos rodeia.

A fé e a razão, assim como a ciência, levam-nos a descobrir a verdade sobre Deus, sobre o mundo e sobre nós mesmos.  Não pode, portanto, existir uma oposição real entre elas, pois se trata de alcançar a mesma realidade.  A harmonia supõe compreender que tudo o que nos rodeia é criação de um único Deus, e portanto todo conhecimento autenticamente científico não pode opor-se a Ele.

A luz da fé, dizia o Papa Francisco, «é uma luz encarnada, que procede da vida luminosa de Jesus.  Ilumina até a matéria, confia em seu ordenamento, sabe que nela se abre um caminho de harmonia e de compreensão cada vez mais amplo.  Assim o olhar da ciência se beneficia da fé: esta convida o cientista a estar aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável.  A fé desperta o sentido crítico, enquanto não permite que a pesquisa se conforme com suas fórmulas e a ajuda a dar-se conta de que a natureza não se reduz a elas.  Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se apresenta aos estudos da ciência»[7].

Perguntas para o diálogo

1.   Quando você iniciou a leitura do texto, acreditava que a fé se opunha à ciência; ou que uma não tinha nada a ver com a outra?

2.   Quão valioso você acha que é para o método científico que os antigos pesquisadores tenham assumido os ensinamentos da Sagrada Escritura de que no cosmos exista uma ordem e causalidade que tornam possível a pesquisa científica?

3.   Por que você acha que o Magistério da Igreja insiste em que a ciência deve assumir uma ética, e que não se pode colocar de lado a moral?

4.   Você poderia explicar com suas palavras por que a fé não se opõe à ciência?

Citações para meditar

Maravilharmo-nos com a criação, sinal do amor de Deus: Sal 8,4-5, Jo 3,16.

Não se deve temer a verdade: Jo 8,32.

A fé possui uma racionalidade; seu objeto não é atribuir a Deus tudo aquilo que a ciência não pode explicar: Heb 11,1.

São Paulo recomenda a pesquisa, para ficar com o bom e rechaçar o mau: 1Tes 5,21-22.

Trabalho de interiorização

Leia e medite o seguinte texto do Beato João Paulo II: «A verdade científica, que é em si mesma participação na Verdade divina, pode ajudar a filosofia e a teologia a compreender cada vez mais plenamente a pessoa humana e a revelação de Deus sobre o homem, uma revelação completada e aperfeiçoada em Jesus Cristo.  Estou profundamente agradecido, junto com toda a Igreja, por este importante enriquecimento mútuo na busca da verdade e do bem da humanidade».  (Discurso na Academia Pontifícia de Ciências, 10 de novembro de 2003). 

1.   O que está indicando o Beato João Paulo II?

2.   Acaso não está convidando os cientistas, filósofos e teólogos a colaborar na busca da verdade e do bem humano?

Um texto para meditar do Papa Bento XVI: «A ética da pesquisa científica (…) deve implicar em uma vontade de obediência à verdade e, portanto, expressar uma atitude que faz parte dos traços essenciais do espírito cristão.  A intenção não é retroceder ou fazer uma crítica negativa, mas ampliar nosso conceito de razão e de seu uso.  Porque, embora nos alegremos pelas novas possibilidades abertas à humanidade, vemos também os perigos que surgem destas possibilidades e devemos nos perguntar como podemos evitá-los.  Só conseguiremos isso se a razão e a fé se reencontram de um modo novo, se superarmos a limitação que a razão impõe a si mesma de reduzir-se ao que se pode verificar com a experimentação, e tornamos a abrir-lhe seu horizonte em toda sua amplitude.  Neste sentido, a teologia, não só como disciplina histórica e ciência humana, mas como teologia autêntica, quer dizer, como ciência que se questiona sobre a razão da fé, deve encontrar espaço na universidade e no amplo diálogo das ciências».  (Bento XVI, Discurso em Ratisbona, 12/09/2006).

1.   Por que é fundamental ensinar que a ciência não pode renunciar à ética?

2.   Para que o Papa convida para um “novo reencontro” entre fé e ciência?

Uma antiquísima experiência

O Antigo Testamento contém a narração de um dos experimentos mais antigos, praticados e registrados pela história.  O Profeta Daniel estava em desacordo com a alimentação que era dada aos soldados hebreus que serviam ao rei Nabucodonosor, dieta generosa em manjares apetitosos e vinho.  Em vez disso recomenda uma dieta austera, baseada em vegetais.  Os cortesãos do monarca desconfiaram dos conselhos de Daniel, acreditando que a dieta proposta pelo Profeta debilitaria os soldados.  Então Daniel formulou uma experiência clínica: os hebreus somente tomariam água e comeriam vegetais, enquanto que um número similar de soldados do rei manteriam a alimentação pesada.  Qual seria o resultado?

Então disse Daniel a Melsar: «Rogo-te, faze uma experiência de dez dias com teus servos: que só nos sejam dados legumes para comer e água para beber. Depois então compararás nossos semblantes com os dos jovens que se alimentam com as iguarias da mesa real, e farás com teus servos segundo o que terás observado. O dispenseiro concordou com essa proposta e os submeteu à prova durante dez dias. No final deste prazo, averiguou-se que tinham melhor aparência e estavam mais robustos do que todos os jovens que comiam das iguarias da mesa real. Em conseqüência disso o dispenseiro retirava os alimentos e o vinho que lhes eram destinados, e mandava servir-lhes legumes.» (Dan 1,1-16).

1.   O que nos ensina esta antiga experiência sobre a confiança em um método científico alheio aos preconceitos das ideologias pseudocientíficas?


[1] Francisco, Lumen fidei, 25.

[2] João Paulo II, Discurso, 10/11/1979.

[3] Bento XVI, Porta fidei, 12.

[4] Inerente – que não se pode separar. Contribuir para a vida é inerente à existência humana.

[5] João Paulo II, Fides et ratio, 1.

[6] Bento XVI, Discurso, 3/5/2012.

[7] Francisco, Lumen fidei, 34

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