O cristão que quer empreender um caminho sério de configuração com o Senhor Jesus descobre logo que se trata de um percurso no qual não faltarão dificuldades. Não é em vão que o próprio Senhor nos diz que no mundo teremos tribulações, como também nos recorda que de mãos dadas com Ele poderemos vencê-las[1]. Estas dificuldades podem ser externas ou internas —às vezes ambas—, e se opõem a que sigamos os propósitos com os quais nos comprometemos e que de todo coração ansiamos alcançar.
Por mais que queiramos uma vida livre de obstáculos, logo compreenderemos que eles são parte do caminho, muitos deles, inclusive, são herança das rupturas que o pecado causou em nosso interior. Neste sentido, é muito importante conhecer estes obstáculos ou situações que nos impedem de realizar nossos bons propósitos. A Direção de São Pedro, e em concreto a gnosis, oferece-nos vários meios que vão ao encontro desta realidade. Um deles é, precisamente, o exame ou “vigilância”.
Olhar para nós mesmos a partir da fé
No contexto da gnosis, o exame ou vigilância não é propriamente o que conhecemos como o exame de consciência que nos prepara para a confissão sacramental. É, melhor dizendo, um exercício habitual de reflexão que nos ajuda a tomar consciência de nossas condutas, nossas motivações, e das circunstâncias em que se produzem reações que não são coerentes com nosso compromisso em avançar para a santidade.
Trata-se, então, de um meio que nosajuda a estar atentos a nós mesmos para nos conhecermos cada vez melhor, e saber descobrir as dificuldades —sejam interiores ou exteriores— que se nos apresentam para poder enfrenta-las. Neste sentido, trata-se de um caminho nitidamente positivo que, na medida do que nos é possível, ajuda-nos a nos olharmos com o olhar que Deus tem sobre nós. Nesse olhar descobrimos o convitea crescer em santidade, a amar o Senhor cada vez mais, a amar ao próximo como a nós mesmos. O exame ou vigilância nos ajuda a descobrir o que nos afasta de alcançar esse ideal, a remover tudo que nos separa do desígnio divino para estar mais preparadospara responder o convite do Senhor e seguir seu Plano de Amor.
O ideal, sabemos bem, é a configuração com o Senhor Jesus. A luz que nos deve iluminar no exame ou vigilância é precisamente a que Elelança sobre nós. A atenção que damos a nosso interior, onde descobrimos as fragilidades, debilidades ou até nosso pecado, não procura nos centrar egoistamente em nós, mas nos aproximar de quem é Caminho, Verdade e Vida. Assim, iluminados pela verdade que provém dEle, o exame se converte em um meio de abertura à graça que nos faz mais livres e mais disponíveis para nos deixar transformar interiormente e represar nossa vida para poder dizer, junto com São Paulo, «é Cristo quem vive em mim»[2].
O exame ou vigilância, então, converte-se também em um meio de unificação de nossa vida, favorecendo um senhorio pessoal que aponta não para uma perfeição de “eficiência” ou de falsa paz, mas a perfeição na caridade.
Ponto de partida
O exame ou vigilância, pelo que foi dito até agora, não é uma mera recontagem de nossas faltas ou pecados. O ponto de partida é a consciência viva de que, imerecidamente, somos amados por Deus e chamados por Ele para a vida verdadeira. Junto com isso, está o profundo desejo de ser cada vez mais como o Senhor Jesus. A partir desta realidade, e deixando-nos iluminar pelo que o Senhor nos ensina de nós mesmos, procuramos nos perguntar como nos encontramos à luz do chamado que Deus nos faz para ser «Santos como eu sou santo»[3].
Na resposta a esse chamado, na medida que avancemos mais em nosso percurso, iremos nos tornando mais aguçados e reverentes para reconhecer, frente a frente como Senhor, o que nosfalta para ser como Ele. Uma pessoa acostumada à desordem, por exemplo, não se incomodará em viver em um lar desordenado. Entretanto, quando começa a colocar tudo em seu lugar e a perceber a maior liberdade e alegria que há quando as coisas estão em seu lugar, então a desordem lhe afetará e buscará logo arrumá-lo. Algo análogovai ocorrendo com nosso interior quando procuramos que se assemelhe cada vez mais ao Senhor Jesus e gozemos de suaharmonia e paz.
A maturidade na vida cristã vai tornando-nos mais sensíveis para perceber o que nos afasta do Senhor, mais aguçados para descobrir os maus hábitos que nos impedem de dar glória a Deus com nossas vidas, e também mais desejosos de nos configurarmos com Ele. Seremos, possivelmente, cada vez mais como um bom músico que sabe, ao escutar apenas uma nota de seu instrumento, se este anda desafinado, e buscaremos prontamente afiná-lo para que a música seja bela e harmoniosa. Às vezes serão maus hábitos que temos, às vezes serão circunstâncias diante das quais podemos reagir de modo mais evangélico. O importante é, no dia a dia, ir descobrindo.
São Francisco de Sales nos indicava um modo de procurar isto quando dizia que é preciso nos perguntar «que afetos ocupam nosso coração, que paixões o dominam e para queladomais se desviou? Pois pelas paixões da alma se reconhece o próprio estado, examinando-as uma a uma. E assim como o que tem que tocar a cítara vai pulsando todas as cordas e afina as que estão desafinadas, esticando-as e afrouxando-as, assimtambém, depois de ter medido o amor ou o ódio, o desejo, o temor, a esperança, a tristeza e a alegria de nossa alma, se as encontrarmos desafinadas para o tom que queremos tocar, que é a glória de Deus, podemos afiná-las com sua divina graça e o conselho de nosso pai espiritual»[4].
Outro autor espiritual, comentando as palavras do chamado santo Bispo de Genebra, dizia que o importante é que «as cordas de meu coração estejamafinadas para o que eu quero tocar, que é a glória de Deus, e o exame tem por fim essencial me mostrar se essas cordas soam bem nesse tom. Pois bem; as cordas de meu coração são minhas disposições interiores; são estas que têm que pulsar para saber que som têm. Cantam a glória de Deus, ou cantam minhasatisfação?»[5].
Humildes diante de Jesus
Uma passagem muito iluminadora ao refletir sobre o exame é o encontro do Senhor Jesus com a Samaritana[6]. Jesus ilumina nosso caminhar e nos convida a reconhecer e aceitar nossas fraquezas e fragilidades precisamente para nos alentar a um maior encontro com Ele. O olhar deJesus não procura esconder o pecado, nem tirar aimportânciade suas consequências. Entretanto, vai muito além, mostrando-nos o horizonte a que somos convidados e reiterando-nos seu chamado, como fez com Pedro, depois das três negações do apóstolo, à beira do lago de Tiberíades[7]. Entretanto, às vezes não sabemos reconhecer que apesar de nossa fragilidade Deus continua apostando em nós. Ele não é o acusador —designaçãomelhor reservada para o Demônio— pelo contrário, é nosso Reconciliador.
É importante esclarecer que não se trata, em nenhum momento, de uma minuciosa e constante revisão escrupulosa de cada um de nossos atos. A princípio possivelmente devamos reservar uns momentos no dia ou na semana para nos determos nisso e, em espírito de oração, “escutar” o que acontece em nosso interior. A prática deste exercício irá tornando-nos mais reverentes para descobrir “sobre a marcha” de nossas disposições interiores, nossas reações, suas origens ou motivações. Então estaremos mais preparados para discernir os modos de superá-las e nos abrirmos cada vez mais ao amor de Deus, procurando que as cordas de nosso coração estejam afinadas e em sintonia com Ele.
O exame, estar atentos e vigilantes ao nosso interior, requer então uma grande humildade, que aberta à verdade reconhece o amor de Deus por cada um de nós. Possivelmente, neste sentido, sempre que nos detenhamos um momento para nos revisar devamos começar com uma ação de graças porque descobriremos que, acima de tudo, Deus nos amou primeiro, sem nenhuma condição prévia. Assim, com nosso coração de joelhos, de mãos dadas com nossa Mãe Santa Maria, o caminho de santidade aparecerá claramente com um caminho de perfeição na caridade e não como um impossível caminho de perfeccionismo humano.
Passagens bíblicas para a oração e meditação:
É importante examinar nosso interior: 1Cor 11,28.
Iluminar nossa fragilidade à luz de Deus: 1Jo 1,7-10; Sal 50,3-5.
Deus aposta em nós apesar de nossa fragilidade: Jo 4,1-30; Jo 21,15-19.
O horizonte é a configuração com o Senhor: Col 3,9-10.
Perguntas para o diálogo:
- O que é o exame ou vigilância?
- Qual é a relação entre o exame ou vigilância e a gnosis segundo a Direção de São Pedro?
- Que características tem este exame?
- Como posso me exercitar neste meio para crescer em conhecimento próprio e do Senhor Jesus?
Trabalho de interiorização
1 – Leia com atenção as seguintes palavras doPapa Francisco:
«Os Santos e os mestres da vida espiritual nos dizem que para ajudar a fazer crescer a autenticidade em nossa vida é muito útil, mais ainda, é indispensável, a prática diária do exame de consciência. O que acontece em minha alma?»
- O que você acha que significa, para oPapa Francisco, «fazer crescer a autenticidade em nossa vida»
- No momento em que me encontro hoje, como respondo à pergunta doPapa: O que acontece em minha alma?
2 – Reflita sobre a seguinte citação bíblica: « Vós vos despistes do homem velho com os seus vícios,e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem daquele que o criou, até atingir o perfeito conhecimento» (Col 3,9-10).
- Qual é o horizonte da vida cristã?
- Que obstáculos interiores descubro para ser cada vez mais como Cristo?
- Que obstáculos exteriores descubro para ser cada vez mais como Cristo?
3 – Escreva uma breve oração que disponha você para fazer um bom exame interior, pedindo humildade e a força para te conhecer cada vez mais à luz da verdade do Senhor Jesus.
[1]Ver Jo 16,33.
[2]Gál 2,20.
[3] Ver Lev 19,2; 1Pe 1,16.
[4] São Francisco de Sales, Introdução à vida devota, V, 7.
[5] Joseph Tissot, A vida interior, Herder, Barcelona 1996, P. 465.
[6] Ver Jo 4,1-30.
[7]Jo 21,15-19.