Caminho para Deus 79 – A fé e a vida cotidiana

1874

«A salvação tem em Cristo seu ponto culminante e seu significado supremo. N’Ele todos recebemos “graça por graça”, alcançando a reconciliação com o Pai… ante Ele se situa a história humana inteira: nosso hoje e o futuro do mundo são iluminados por sua presença»[1].

 O Jubileu do ano 2000 nos convida a dirigir o olhar, uma e outra vez, a um acontecimento histórico sem igual: o Verbo eterno se faz homem[2]. Sim! DEUS, o infinito, o eterno, o criador de todo o universo e do homem, SE FEZ HOMEM! Considerar seriamente o significado desta afirmação, não deveria deixar-nos perplexos? Sem dúvida é um fato que ultrapassa absolutamente nossa capacidade de compreensão. Que o infinito se faça limitado! O Verbo eterno, o Filho do Pai, se fez  homem! Com que facilidade  nos acostumamos a dize-lo, com que naturalidade o escutamos. Mas, tomamos realmente consciência do que isto significa, de modo que essa consciência influa decisivamente em nosso ser e atuar?

 Tomar consciência do peso que tem o inefável acontecimento da Encarnação do Verbo eterno e seu Nascimento entre nós não pode deixar-nos indiferentes.  O fato é demasiadamente  importante  para não tê-lo em conta em nossas vidas, ou para “passar despercebido” por ele. Ao contrário, exige um “tomada de decisão”, uma resposta, uma opção: ou creio, ou não creio. Ou estou com Ele, ou estou contra Ele[3].  Inclusive a indecisão sobre este ponto deve se resolver em uma direção, já que cada pessoa tem, não só o direito, mas o dever de buscar a verdade e segui-la.

 Fé: opção e adesão

 A fé, convém recordar brevemente[4], é um processo de abertura a Deus e de confiança n’Ele, processo que leva à adesão total de minha pessoa —mente, coração, ação[5]— a tudo quanto Ele revelou e que a Igreja —instruída pelo Senhor e assistida pelo Espírito Santo— propõe para ser crido[6]. Nisto o Senhor Jesus ocupa novamente um lugar primordial: «a verdade íntima sobre Deus e sobre a salvação humana nos é  manifestada pela revelação em Cristo, que é, ao mesmo tempo, mediador e plenitude de toda a revelação»[7].

Aceitar o Senhor, optar por crer n’Ele, é abrir a mente à verdade que Ele revela e o coração ao amor que Ele derrama em nossos corações, é aspirar a viver um processo que leve lentamente à plena e fecunda adesão a Ele. A adesão ao Senhor Jesus permite o fluxo vital da graça que, com nossa cooperação, nos leva a transformar-nos interiormente, a conformar-nos com quem é modelo de autêntica e plena humanidade, e a dar frutos de santidade em nossa vida cotidiana. O Senhor o explicou usando uma simples comparação: «Eu sou a videira; vós os ramos»[8]. Todo um programa de vida! Quem pelo amor se adere e permanece aderido a Ele, como os ramos que se nutrem da seiva do tronco, se desenvolve, dá fruto abundante na vida cotidiana. Ao contrário, quem se separa dele, se fecha sobre si mesmo, e com o tempo se seca e murcha. Simplesmente assim.

Senhor, eu creio!

O Senhor Jesus, dia a dia, dirige também uma pergunta crucial a quem se curou da cegueira que produz o pecado[9], ou seja, a todo batizado: «Crês tu no Filho do homem?». Frente a esta pergunta cabe apenas uma resposta certa: «Creio, Senhor!». Este é um creio adorativo que leva ao cristão a prostrar-se diante d’Ele[10], este é o creio que se une ao primeiro “credo” que, ao acolher o dom do Alto, professou Pedro: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo»[11]. A fé professada por Pedro é, convém recordar, a fé que também hoje professa a Igreja. É pela fé de Pedro que conhecemos, e por ela que confessamos, quem é Jesus Cristo, sua verdadeira identidade.

Esta pergunta que através dos tempos também nos faz o Senhor HOJE, não permite uma atitude indiferente, despreocupada: pede uma resposta comprometida, dada desde nossa fome de plenitude, nossa fome de Deus.  Pede um prostrar-se diante d’Ele com todo o ser, reconhecê-lo como Senhor[12]. Este “Creio” exige uma aderência total da própria pessoa, tal e como Deus a solicitou desde o princípio ao primeiro povo eleito: «Amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração[13], com toda tua alma e com toda tu força»[14]. Quando vê realmente, quando se dissipa a cegueira que o impedia de reconhecer Quem é Ele, o homem está  capaz de crer n’Ele e de adorá-lo como Senhor. Sua adoração, se é sincera, o envolve por inteiro: corpo, alma e espírito.

Coerência entre fé e vida

O título deste Caminho para Deus abre espaço a algumas perguntas: São a fé e a vida duas realidades que podem permanecer freqüentemente desconexas uma das outras, de modo que posso afirmar que sou cristão e comportar-me habitualmente como quem não crê? É válido dissociar assim fé e vida, estabelecer um “divórcio” entre ambas? Ou devo afirmar  porém, que toda a minha vida, e portanto tudo o que penso, digo e faço em minha vida cotidiana deve sempre fundar suas raízes na fé e nutrir-se dela?

Sim, é importante compreender e afirmar isto: a fé no Senhor Jesus necessariamente deve exercer uma crescente influência em meus pensamentos e reflexões, em meu modo de me aproximar à realidade e de relacionar-me com as pessoas, em meus comportamentos, em meus sentimentos, em minhas opções cotidianas, em minhas obras.

 E se descubro alguma incoerência em minha vida, entre o que creio e o que faço,  tenho o auxilio do Alto[15] e a liberdade para dizer: «Basta! Creio em Ti, Senhor, e vou  ser coerente em minha vida diária, em minha vida cotidiana, em meus afazeres cotidianos. Vou  esforçar-me dia a dia para crescer nesta coerência! E se acaso caio, me levantarei. E se caio novamente tornarei a levantar-me quantas vezes forem necessárias, porque creio, Senhor, que Tu es “o Caminho, a Verdade e a Vida”[16]».

 Eis aí a chave: crescer em coerência. Por isso, esta é a pergunta chave à luz da qual devo examinar-me todos os dias: estou me esforçando realmente para ser mais coerente, para fazer com que minha fé se faça vida cotidiana? Que meios vou colocar, para que assim seja?

Citações para a oração

  • Para pedir que aumente a fé: Mc 9,24; Lc 17,5.
  • Sobre a necessidade de por em prática o que o Senhor ensina: Mt 7,21.24-27.
  • Relação entre a fé e as obras da vida cotidiana: Tg 2,14-24.
  • Maria é modelo de uma fé que se faz vida cotidiana: Lc 11,27-28. Ela nos alenta a atuar conforme o que ensina seu Filho: Jo 2,5.

·         Sobre a necessidade de crer no Senhor Jesus: Jo 3,16; Jo 3,35-36; Jo 5,23; Jo 6,40; Jo 14,6.

 



[1] Incarnationis Mysterium, 1.

[2] Ver Jo 1,1-14.

[3] Ver Mt 12,30.

[4] O tema foi devidamente tratado no CPD, Tomo I,  p. 111-116. A ele nos remetemos.

[5] Ver Dt 6,4-5.

[6] Ver Catecismo da Igreja Católica, 1814.

[7] Dei Verbum, 2.

[8] Jo 15,5.

[9] Ver Atos 26,17-18.

[10] Ver Jo 9,35-38.

[11] Mt 16,16.

[12] Ver Fp 2,9-11.

[13] O termo hebraico lebab  traduz-se literalmente por coraçaõ, que na mentalidade semita significava não só a sede do sentimento do amor —como costuma entender  nossa cultura—, mas a totalidade da pessoa, todo o ser.

[14] Dt 6,5.

[15] Ver Rm 8,26.

[16] Jo 14,6.

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