I DOMINGO DA QUARESMA: “Cristo se deixou tentar, para que aprendamos com Ele a vencer a tentação”

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I. A PALAVRA DE DEUS

Dt 26, 4-10: “O Senhor nos tirou do Egito com mão poderosa e braço estendido”

Assim Moisés falou ao povo:

4 O sacerdote receberá de tuas mãos a cesta e a colocará diante do altar do Senhor teu Deus.

5 Dirás, então, na presença do Senhor teu Deus:

– ‘Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso. 6 Os egípcios nos maltrataram e oprimiram, impondo-nos uma dura escravidão. 7 Clamamos, então, ao Senhor, o Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu a nossa voz e viu a nossa opressão, a nossa miséria e a nossa angústia. 8 E o Senhor nos tirou do Egito com mão poderosa e braço estendido, no meio de grande pavor, com sinais e prodígios. 9 E conduziu-nos a este lugar e nos deu esta terra, onde corre leite e mel. 10 Por isso, agora trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor’.

Depois de colocados os frutos diante do Senhor teu Deus, tu te inclinarás em adoração diante dele.

 

Sal 90, 1-2.10-15: “Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!”

1 Quem habita ao abrigo do Altíssimo
e vive à sombra do Senhor onipotente,
2 diz ao Senhor: ‘Sois meu refúgio e proteção,
sois o meu Deus, no qual confio inteiramente’.

10 Nenhum mal há de chegar perto de ti,
nem a desgraça baterá à tua porta;
11 pois o Senhor deu uma ordem a seus anjos
para em todos os caminhos te guardarem.

12 Haverão de te levar em suas mãos,
para o teu pé não se ferir nalguma pedra.
13 Passarás por sobre cobras e serpentes,
pisarás sobre leões e outras feras.

14 ‘Porque a mim se confiou, hei de livrá-lo
e protegê-lo, pois meu nome ele conhece.
15 Ao invocar-me hei de ouvi-lo e atendê-lo,
e a seu lado eu estarei em suas dores.

 

Rom 10, 8-13: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”

8 O que diz a Escritura?

‘A palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração’.

Essa palavra é a palavra da fé, que nós pregamos.

9 Se, pois, com tua boca confessares Jesus como Senhor e, no teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo.

10 É crendo no coração que se alcança a justiça e é confessando a fé com a boca que se consegue a salvação.

11 Pois a Escritura diz:

‘Todo aquele que nele crer não ficará confundido’.

12 Portanto, não importa a diferença entre judeu e grego; todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que o invocam.

13 De fato, todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo.

 

Lc 4, 1-13: “Jesus, no deserto, era guiado pelo Espírito e foi tentado.”

Naquele tempo: 1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito.

2 Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e depois disso, sentiu fome. 3 O diabo disse, então, a Jesus:

– ‘Se és Filho de Deus,  manda que esta pedra se mude em pão.’

4 Jesus respondeu:

– ‘A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’.

5 O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo 6 e lhe disse:

– ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. 7 Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu.’

8 Jesus respondeu:

– ‘A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’.’

9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse:

– ‘Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! 10 Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ 11E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’.’

12 Jesus, porém, respondeu:

– ‘A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’.’

13 Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.

 

II. COMENTÁRIOS

Depois de ser batizado por João nas águas do Jordão, o Senhor foi levado ao deserto pelo Espírito Santo. Ali permaneceria quarenta dias em solidão, oração e estrito jejum. Deste modo o Senhor quis preparar-se para dar início a sua vida pública, para anunciar o Evangelho a todos os homens, para fundar Sua Igreja e levar a cabo a reconciliação da humanidade mediante sua morte na cruz e sua ressurreição.

Por volta do final desta quarentena o Senhor «sentiu fome». É sabido que a fome desaparece pouco tempo depois de começar um jejum, para retornar com uma força feroz aproximadamente aos quarenta dias. Trata-se de um fenômeno que os médicos chamam “gastrokenosis”. Que o Senhor Jesus tenha “sentido fome” depois de quarenta dias quer dizer que sentiu voltar a fome de uma maneira brutal.

É nesta situação de tremenda necessidade física, assim como de fragilidade e debilidade pelo longo jejum, que o Senhor é tentado por Satanás. Precisamente a fome intensa que o Senhor experimenta será ocasião para propor sua primeira tentação: «Se és Filho de Deus,  manda que esta pedra se mude em pão.» (Lc 4, 3). Quem fez a água converter-se em vinho, tinha certamente o poder de converter uma pedra em pão. Entretanto, não está disposto a fazer milagre algum para responder a uma provocação do adversário de Deus. Não é ao demônio a quem o Senhor dá ouvidos mesmo em uma situação tão extrema, mas a seu Pai. É a Sua voz que Ele escuta e obedece. São Seus ensinamentos que Ele toma como critério de ação, é por isso que a esta e às seguintes tentações o Senhor responderá não argumentando, não arguindo ou dialogando com o tentador, mas cortando radicalmente toda possibilidade de diálogo ao opor uma sentença divina a cada sugestão do Maligno. Em resposta à primeira tentação dirá: «A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’» (Lc 4, 4), «mas de toda palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4, 4). Para o Senhor Jesus a palavra divina devidamente acolhida, meditada, interiorizada e apropriada, é critério de conduta acertada frente a toda sugestão ou tentação do Maligno, que é pai da mentira, mestre do engano e da ilusão, “péssimo conselheiro” (São Cirilo de Jerusalém). Opor uma sentença divina à tentação é o método inteligente que o Senhor Jesus aplica para derrotar a Satanás.

Na tentação seguinte o Diabo faz com que o Senhor vislumbre todos os reino do mundo e lhe oferece: «Eu te darei todo este poder e toda a sua glória,… se te prostrares diante de mim em adoração » (Lc 4, 6 7). A insidiosa tentação corresponde à vocação própria do Messias: está reservado a Ele o poder e a glória, tudo será submetido sob seu domínio. O tentador usa a mesma estratégia que utilizou para seduzir Eva: «serão como deuses» (Gen 3, 5). Pois na realidade Deus convidou sua criatura humana a “ser como Deus”, mas não separado Dele, e sim participando de sua própria natureza divina (ver 2 Pe 1, 4), na eterna comunhão com Ele. É com Deus que o ser humano está chamado a “ser como Deus”. E esse desejo está posto no coração do homem por Deus mesmo, para que aspire a isso. Pois bem, o Diabo propõe ao ser humano responder a esse desejo e vocação de um modo imediato, sem muito esforço, tão somente rechaçando a Deus e seu conselho e fazendo em troca o que ele propõe.

Seguindo esta mesma estratégia o Diabo promete ao Senhor Jesus o domínio total sobre o mundo inteiro, o poder e a glória, nesse mesmo instante, simplesmente ajoelhando-se diante ele e adorando-o. A tentação da glória e do poder sempre é grande, sobretudo para quem tem capacidades e dons para isso, para quem está chamado a exercer a autoridade serviçal sobre outros. O Senhor Jesus rechaça a tentação do poder e da glória do modo como Satanás a propõe recorrendo novamente às palavras inspiradas por Deus: «A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’.» (Lc 4, 8). É do Pai de quem Ele espera receber o poder e a glória para tudo submeter (ver Flp 3, 21; 1Cor 15, 27-28; Ef 1, 22; Heb 2, 8-9), não do diabo.

Para submetê-lo a uma terceira tentação Satanás leva o Senhor Jesus a Jerusalém e o põe no beiral do templo, propondo-Lhe: «Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’.» (Lc 4, 9 11). Para induzir o Senhor Jesus a cair nesta nova tentação, o Diabo usa de toda a sua astúcia e cita tendenciosamente as palavras da Escritura, tiradas do Salmo 90. Dá à sua tentação um “fundamento bíblico”, usando a mesma técnica que o Senhor utilizou até então para rechaçar suas tentações: o recurso ao ensinamento divino. Satanás tenta servir-se da Escritura para confundir e enganar o Senhor e assim apartá-Lo da obediência a Deus. A réplica do Senhor é novamente lapidar, contundente: «A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’» (Lc 4, 12).

O Senhor Jesus em nenhum dos casos apresentou a Satanás sua própria opinião ou raciocínio, por mais inteligente que fosse. No meio da tentação, da fraqueza, da provação, o Senhor sabe bem que não deve entabular diálogo algum, que a única maneira de vencer a tentação e responder ao tentador é com o ensinamento divino, com o critério objetivo que Deus dá ao ser humano para que não erre o caminho, para que alcance sua verdadeira realização fazendo um reto uso de sua liberdade.

O Mestre, que se deixou tentar no deserto, ensina com a força de seu exemplo que a tentação só se derrota confiando em Deus e aderindo-se mental e cordialmente a seus ensinamentos, aos critérios objetivos que Ele dá ao ser humano para que possa, abrindo-se à graça divina, seguir o caminho que conduz a sua verdadeira realização.

Deus, que criou o ser humano, quer sua realização, não sua destruição. Obedecer à tentação e sedução do Maligno (ver Gen 3, 1ss) trouxe o mal e a morte ao mundo, traz a destruição sobre nós mesmos. O pecado é, por isso mesmo, um ato suicida. Deus, como vemos na primeira leitura e no salmo, é quem liberta e salva sua criatura humana da morte que é consequência do pecado do homem. Faz isso, finalmente por meio de seu Filho Jesus Cristo. Ele traz a salvação e reconciliação ao mundo inteiro, libertando o homem do domínio do pecado e da morte, do domínio de Satanás. Quem acredita que Cristo é o Filho de Deus, quem acredita que Ele é O Salvador e Reconciliador do mundo, quem acredita que Deus O ressuscitou verdadeiramente, como afirma São Paulo na segunda leitura, esse «se salvará».

 

III. LUZES PARA A VIDA CRISTÃ

A passagem evangélica deste Domingo nos recorda que temos um inimigo invisível, espiritual, que busca nos apartar de Deus, que por inveja busca destruir a obra de Deus que cada um de nós é. O Papa Paulo VI dizia a respeito que  «o mal que existe no mundo é o resultado da intervenção em nós e em nossa sociedade de um agente escuro e inimigo, o Demônio. O mal não é apenas uma deficiência, mas um ser vivo, espiritual, pervertido e pervertedor».

Diante desta realidade, o maior triunfo do demônio é nos fazer pensar que não existe. Quem na vida cotidiana esquece ou despreza esta presença ativa e atuante, parece-se com um soldado que no meio da batalha “se esquece” que tem um inimigo: rapidamente será aniquilado. Por isso São Pedro nos convida a estar alertas, pois «seu adversário, o Diabo, ronda como leão que ruge, procurando a quem devorar» (1Pe 5, 8-9). O esquecimento, a inconsciência, o não acreditar na existência do demônio e sua ação em nossas vidas leva a baixar a guarda na luta. Quem se descuida, será surpreendido como a sentinela que fica dormindo em seu posto de vigia e não percebe a chegada do inimigo que silenciosamente se aproxima para tomar de assalto a cidade.

Assim como tentou com o Senhor Jesus, o Diabo também procura nos apartar de Deus e de nossa felicidade. Para isso utiliza a tentação, que é uma sugestão para agir de um modo contrário ao que Deus ensina. Só pode sugerir, nunca poderá nos obrigar, ou mover nossa vontade contra nossa liberdade.

Para conseguir nos convencer de agir o mal, o Demônio mente e engana (ver Jo 8, 44). Nunca vai apresentar para você o mal objetivo como algo que é mau para você, nunca vai dizer-lhe: “isto que te proponho vai fazer-te mal, vai fazer-te infeliz, vai levar-te à ruína”. Justamente o contrário! Apresentará como muito bom para ti, como algo “excelente para obter sabedoria” (ver Gen 3, 6), como algo que te trará a felicidade, o que objetivamente é um mal e te levará à morte espiritual (ver Gen 3, 3). O Demônio é muito ardiloso, tem a habilidade de nos envolver na confusão e nos enganar de tal maneira que terminamos vendo em um pouco de água suja e envenenada a água mais pura do mundo.

Para que sua tentação tenha acolhida procura fazer-te desconfiar de Deus e da bondade de seu Plano para contigo, pois enquanto te aferres à palavra e conselho divino tal como o fez o Senhor Jesus no deserto, não poderá te vencer. Quantas vezes o Demônio te sugere que Deus na realidade não quer teu bem (ver Gen 3, 2-5), que é um egoísta, que não te escuta, que seguir seu Plano é renunciar a sua própria felicidade, condenar-te a uma vida escura, triste e infeliz! E uma vez que semeia em ti essa desconfiança em Deus e em seus amorosos desígnios para contigo, ele mesmo se apresenta como aquele que é digno de crédito, e sua tentação como “a verdade” que conduz a sua felicidade, a sua realização, a sua vida plena: “serás como deus!”

Conscientes da existência e ação do Demônio em nossas vidas a primeira coisa que devemos fazer é estar vigilantes, alertas, atentos, para não nos deixarmos surpreender pelo inimigo, por suas seduções disfarçadas de milhares de formas belas para apanhar os incautos. Como diz São Paulo, Satanás até se disfarça de «anjo da luz» (2 Cor 11, 2).

Não que tudo seja tentação na vida diária, mas há sugestões, pensamentos, ideias, propostas abertas ou encobertas que de fato o são. Por isso é importante adquirir o hábito do “discernimento de espíritos”. Trata-se de um exercício espiritual muito antigo. São João recomendava aos primeiros cristãos: «Queridos, não confiem em qualquer espírito, mas examinem se os espíritos vêm de Deus» (1 Jo 4, 1). Trata-se de não acreditar em si e fazer a primeira coisa que vem à mente, mas de examiná-la à luz do Evangelho: isto que penso, isto que vem a minha mente, vem de Deus, ou não? O critério para discernir é muito simples: se me levar a Deus e a permanecer em comunhão com Ele, vem de Deus. Então devo agir nesse sentido. Mas se vir que isso não vai me aproximar de Deus mas em vez disso vai separar-me Dele, não vem de Deus (pode vir do demônio mesmo, ou do mundo, ou de minha própria inclinação ao pecado). Nesse caso, devo rechaçá-lo com toda firmeza.

Quando após examinar uma sugestão percebo que é uma tentação, devo aplicar esta regra do bom combate: “Com a tentação não se dialoga”. Quer dizer, não acolha a ideia, não deixe que ela dê voltas e voltas na sua mente. Quem consente em “dialogar” com a tentação em sua mente, muito provavelmente perderá a batalha. Entre o diálogo com a tentação e a queda há uma distância mínima. Por isso, como nos ensina o Senhor no deserto, a tentação se vence com um terminante “Não”!, opondo-lhe um “critério evangélico”, um ensinamento divino. Suposta a graça ou força divina, que Deus derrama abundantemente em nossos corações e sem a qual nada podemos, em cada um está a capacidade de vencer a tentação. Como diz São Tiago: «resistam ao Diabo e ele fugirá de vós. Aproximem-se de Deus e ele se aproximará de vós» (Tg 4, 7-8).

 

IV. PADRES DA IGREJA

São João Crisóstomo: «“Então o Espírito levou Jesus ao deserto, para que o diabo o pusesse a prova” (Mt 4, 1)… Tudo o que Jesus sofreu e fez estava destinado a nossa instrução. Quis ser levado a este lugar para lutar com o demônio, para que ninguém entre os batizados se perturbe se depois do batismo for submetido a grandes tentações. Em vez disso, tem que saber suportar a provação como algo que está dentro dos desígnios de Deus. Para isso recebestes as armas: não para ficar inativos, mas para combater».

Santo Agostinho: «Nossa vida, com efeito, enquanto durar esta peregrinação, não pode ver-se livre de tentações; pois nosso progresso se realiza por meio da tentação e ninguém pode conhecer-se a si mesmo se não for tentado, nem pode ser coroado se não tiver vencido, nem pode vencer se não tiver lutado, nem pode lutar se carecer de inimigo e de tentações… Sabes que Cristo foi tentado, e não percebes que venceu a tentação? Reconheça-te a ti mesmo tentado nele, e reconheça-te também a ti mesmo vitorioso nele. [Jesus] teria podido impedir a ação tentadora do diabo; mas então você, que está sujeito à tentação, não teria aprendido com Ele a vencê-la».

São João Crisóstomo: «Veja como o Senhor não se perturba, mas em vez disso disputa humildemente com o iníquo [o diabo] a respeito das Escrituras, para que você se configure com Cristo naquilo que puder. O diabo conhece as armas com as quais foi vencido por Jesus Cristo; com a mansidão lutou, com a humildade venceu-o. Você também, quando vir um homem, feito um diabo, vir contra ti, vencê-lo-á do mesmo modo. Que sua alma aprenda a configurar suas palavras com as de Jesus Cristo; porque do mesmo modo que o juiz romano, sentado em seu tribunal, não escuta a resposta de quem não sabe falar como ele, tampouco Jesus Cristo te escutará nem assistirá se não falares como Ele».

São Gregório Niceno: «O que briga com valor, chega ao término de seus combates, ou porque o adversário cede espontaneamente ao vencedor, ou porque à terceira derrota deponha as armas, segundo as leis da guerra. Por isso segue: “Concluídas as tentações, retirou-se”».

 

V. CATECISMO DA IGREJA

As tentações de Jesus

  1. Os evangelhos falam de um tempo de solidão que Jesus passou no deserto, imediatamente depois de ter sido batizado por João: «Impelido» pelo Espírito para o deserto, Jesus ali permanece sem comer durante quarenta dias. Vive com os animais selvagens e os anjos servem-nO. No fim desse tempo, Satanás tenta-O por três vezes, procurando pôr em causa a sua atitude filial para com Deus; Jesus repele esses ataques, que recapitulam as tentações de Adão no paraíso e de Israel no deserto; e o Diabo afasta-se dEle «para retornar no tempo oportuno» (Lc 4, 13).
  2. Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento misterioso, Jesus é o Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que o primeiro sucumbiu à tentação. Jesus cumpre perfeitamente a vocação de Israel: contrariamente aos que outrora, durante quarenta anos, provocaram a Deus no deserto, Cristo revela-Se o Servo de Deus totalmente obediente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o Diabo: «amarrou o homem forte», para lhe tirar os despojos. A vitória de Jesus sobre o tentador, no deserto, antecipa a vitória da paixão, suprema obediência do seu amor filial ao Pai.
  3. A tentação de Jesus manifesta a maneira própria de o Filho de Deus ser Messias, ao contrário da que Lhe propõe Satanás e que os homens desejam atribuir-Lhe. Foi por isso que Cristo venceu o Tentador, por nós: «Nós não temos um sumo-sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas; temos um, que possui a experiência de todas as provações, tal como nós, com exceção do pecado» (Heb 4, 15). Todos os anos, pelos quarenta dias da Grande Quaresma, a Igreja une-se ao mistério de Jesus no deserto.

 “Não nos deixes cair na tentação”

  1. Esta petição atinge a raiz da precedente, porque os nossos pecados são fruto do consentimento na tentação. Nós pedimos ao nosso Pai que não nos «deixe cair» na tentação. Traduzir numa só palavra o termo grego é difícil. Significa «não permitas que entre em», «não nos deixes sucumbir à tentação». «Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém» (Tg1, 13). Pelo contrário, Ele quer livrar-nos do mal. O que Lhe pedimos é que não nos deixe seguir pelo caminho que conduz ao pecado. Nós andamos empenhados no combate «entre a carne e o Espírito». Esta petição implora o Espírito de discernimento e de fortaleza.
  2. O Espírito Santo permite-nosdiscernir entre a provação, necessária ao crescimento do homem interior em vista de uma virtude «comprovada» (Rom 5, 3-5) e a tentação que conduz ao pecado e à morte. Devemos também distinguir entre «ser tentado» e «consentir» na tentação. Finalmente, o discernimento desmascara a mentira da tentação: aparentemente, o seu objeto é «bom, agradável à vista, desejável» (Gn 3, 6), quando, na realidade, o seu fruto é a morte.
  3. «Não entrar em tentação» implica uma decisão do coração: «Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração […] Ninguém pode servir a dois senhores» (Mt6, 21, 24). «Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o Espírito» (Gl 5, 25). É neste «consentimento» ao Espírito Santo que o Pai nos dá a força. «Não vos surpreendeu nenhuma tentação que tivesse ultrapassado a medida humana. Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação, vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar» (1 Cor 10, 13).
  4. Ora um tal combate e uma tal vitória só são possíveis pela oração. Foi pela oração que Jesus venceu o Tentador desde o princípio e no último combate da sua agonia. Foi ao seu combate e à sua agonia que Cristo nos uniu nesta petição ao nosso Pai. A vigilância do coração é lembrada com insistência em comunhão com a sua. A vigilância é a «guarda do coração» e Jesus pede ao Pai que «nos guarde em seu nome» (Jo 17, 11). O Espírito Santo procura incessantemente despertar-nos para esta vigilância. Esta petição adquire todo o seu sentido dramático, quando relacionada com a tentação final do nosso combate na terra: ela pede aperseverança final. «Olhai que vou chegar como um ladrão: feliz de quem estiver vigilante!» (Ap 16, 15).

 “E livrai-nos nos do mal”

  1. Nesta petição, o Mal não é uma abstração, mas designa uma pessoa, Satanás, o Maligno, o anjo que se opõe a Deus. O «Diabo» («dia-bolos») é aquele que «se atravessa» no desígnio de Deus e na sua «obra de salvação» realizada em Cristo.
  2. «Assassino desde o princípio, […] mentiroso e pai da mentira» (Jo 8, 44), «Satanás, que seduz o universo inteiro» (Ap12, 9), foi por ele que o pecado e a morte entraram no mundo, e é pela sua derrota definitiva que toda a criação será «liberta do pecado e da morte». «Sabemos que ninguém que nasceu de Deus peca, porque o preserva Aquele que foi gerado por Deus, e o Maligno, assim, não o atinge. Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro está sujeito ao Maligno» (1 Jo 5, 18-19):

 

VI. TEXTOS DA ESPIRITUALIDADE SODÁLITE

“Não temas; agora o príncipe deste mundo será lançado fora. Meu Reino chegou e pelo Espírito Santo expulso os demônios. Com minha morte aniquilei o senhor da morte, quer dizer, o diabo, e libertei aos que por temor à morte estavam sem vida, como tu, submetidos à escravidão. Passei minha vida fazendo o bem e curando os oprimidos pelo diabo, expulsei a muitos demônios e me manifestei para desfazer as obras do diabo.

Tens que lutar contra Satanás, pois ele é o sedutor do mundo, o mais ardiloso de todos os animais do campo, homicida desde o começo, mentiroso e pai da mentira. Ele é senhor da morte e por ele a morte entrou no mundo e a experimentam os que lhe pertencem. Ele é o opressor que tinha os homens cativos e rendidos a sua vontade, o causador da ruína dos homens.

Sede sóbrio e vigiai, pois Satã, que se disfarça como anjo da luz, anda como um leão que ruge, procurando a quem devorar. Resiste firme na fé, sabendo que seus irmãos que estão no mundo suportam os mesmos sofrimentos.

Revista-te de minhas armas para poder resistir às armadilhas do diabo, porque tua luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os espíritos do mal que estão nas alturas.

Ponha-te de pé! Circunde a cintura com a verdade e revista-te da justiça como couraça, calça teus pés com o zelo pelo Evangelho da paz, empunha sempre o escudo da fé para que possas apagar com ele os dardos flamejantes do maligno.

Não tema pelo que vais sofrer: o diabo colocará a alguns de vocês no cárcere para que sejam tentados, e sofrerão uma tribulação. Mantenha-te fiel até a morte e te darei a coroa da vida”.

(P. Jaime Baertl, Resiste ao diabo em “Estou à porta… Escute-me”. Orações para o encontro com o Senhor. Vida e Espiritualidade, Lima 2014).

Enkráteia” é um domínio sobre nós mesmos e sobre as coisas, um autocontrole pleno de firmeza. Traduz-se geralmente como moderação, entendida por moderação nos prazeres e domínio das paixões. Faz referência, neste sentido, ao ‘reto estado da mente, coração e vida diante daqueles objetos no mundo que naturalmente chamam a atenção de nossos desejos’, e é um convite a ter moderação e controle dos pensamentos, dos afetos e do comportamento nas coisas temporais, mesmo que estas não sejam más em si mesmas…

A enkráteia é um caminho positivo de domínio sobre nós mesmos e sobre o que o mundo nos oferece… Sem ter uma aproximação negativa às coisas que Deus desde sua infinita bondade criou e colocou no mundo a serviço do homem, o cristão sabe que nelas não está sua felicidade plena, são apenas meios para o cumprimento do Plano de Deus. Olhando-as assim, dá-lhes seu justo valor e as utiliza com moderação e liberdade.

Quem vive a enkráteia não se engana nem cria ilusões a respeito de onde está sua verdadeira realização, e tende a manter-se como senhor de si mesmo no uso dos dons ao seu dispor. Esta construtiva e inspiradora perspectiva caminha junto a outra um tanto mais rigorosa e restritiva, como expressa São Paulo: ‘Os atletas se privam de tudo; e isso por uma coroa corruptível!; nós, porém, por uma incorruptível’. Às vezes a enkráteia nos leva a renunciar a certas coisas lícitas em si mesmas, com vistas a um fim maior, não deixando que o gosto ou desejo natural interfira com as próprias convicções, obrigações ou metas propostas. Nesta mesma linha, outra dimensão da enkráteia, muito necessária, é a luta por dominar as manifestações do homem velho, da natureza ferida pelo pecado (quer dizer, a concupiscência), que se rebela quando alguém busca encaminhar-se pelo caminho da virtude e da vida de santidade. Estas manifestações do homem velho nos levam, muitas vezes, precisamente a ser imoderados no uso das coisas do mundo, a nos deixar levar pelos critérios de gosto e desgosto, utilizando mal nossa liberdade e nos afastando do ‘caminho estreito’ que conduz àquele ‘nos revestir’ do homem novo em Cristo”.

(Kenneth Pierce Balbuena, A escada espiritual de São Pedro. Fundo Editorial, Lima 2010)

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