Dizia Aristóteles em sua Ética a Nicômaco que o objetivo da Ética não é que nos tornemos peritos ou especialistas na virtude, mas que nos tornemos virtuosos[1]. A aquisição da virtude é possível por meio das ações morais livres da pessoa humana, nas quais ela escolhe realizar o bem moral em cada situação concreta da vida.
Muitas coisas poderiam ser ditas sobre o tema da virtude. Queremos aqui, porém, refletir um pouco sobre uma intuição de Aristóteles que diz respeito ao significado moral dos afetos. Afirma Aristóteles, também na Ética a Nicômaco, que o homem virtuoso não é apenas aquele que conhece o bem moral e o realiza nas suas ações, senão que, além disso, alegra-se em realizá-lo[2]. É precisamente essa a diferença entre o homem virtuoso e o continente. O continente conhece o bem moral e o realiza, mas a sua sensibilidade, o mundo dos seus afetos, ainda não está em plena sintonia com a sua razão e o seu agir.
Desdobrando um pouco a intuição aristotélica, poderíamos perguntar: como é possível transformar os afetos? As ações humanas têm como seu princípio a vontade humana livre. E as virtudes são consequência dessas ações e têm, portanto, também seu princípio na vontade. Com os afetos a nossa experiência não é a mesma. O amor que temos por uma pessoa, por exemplo, não é algo que nós tenhamos escolhido. A nossa experiência é, geralmente, de algo que nos acontece, de um dom que recebemos. Muitas vezes, também, somos incapazes de comover-nos com a miséria do nosso próximo, mas, de repente um dia essa miséria encontra um eco, uma resposta em nosso coração, antes indiferente, como aconteceu com São Francisco quando abraçou o leproso, no início da sua conversão.
Em sua obra “Ética cristã”, o filósofo alemão D. Von Hildebrand, reflete sobre a relação da vontade humana livre com os afetos. A relação é diferente à existente entre a vontade e os atos e também entre a vontade e as virtudes. No caso dos afetos, a vontade se relaciona com eles com o que Von Hildebrand chama de “liberdade cooperadora”[3].
A “liberdade cooperadora” é uma palavra interior da vontade, que pode ser um “sim” ou um “não” a um determinado afeto ou sentimento. O afeto tem um caráter de dom, mas que precisa da cooperação da vontade livre para ser plenamente recebido ou rejeitado (Von Hildebrand fala, no segundo caso, em “decapitação” de um determinado sentimento). Em determinados casos, por exemplo, diante da alegria que uma pessoa pode sentir por uma desgraça que acontece com outro, considerado “inimigo”, a vontade deverá dizer um “não” rotundo.
Uma objeção pode ser apresentada. Certos sentimentos, por exemplo, quando sentimos dor de cabeça ou dor de dente, ou até mesmo quando acordamos de mau humor, parece que se nos impõem. Nestes casos a “liberdade cooperadora” não exerce nenhum influxo sobre eles.
Isto acontece porque esses sentimentos são ou físicos (dor de cabeça, dor de dente), isto é, constituem a nossa experiência direta do corpo, ou psíquicos (estados de ânimo que provém, geralmente, de algo que se passa com o nosso corpo). Segundo Von Hildebrand, que tenhamos ou não este tipo de sentimentos, mais propriamente chamados de “estados”, carece de qualquer significado moral.
Os sentimentos com os quais se relaciona a vontade livre cooperadora são distintos. Diferentemente dos sentimentos físicos e psíquicos, referimo-nos aqui a respostas afetivas intencionais, isto é, que implicam, para a sua existência, a relação consciente e significativa com um objeto que é seu motivador.
O amor de São Francisco pelo leproso, que se manifesta no abraço, é uma resposta afetiva ao rosto de Cristo sofredor, que ele reconhece no leproso. No fundo, ao valor ontológico da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida pelo sangue de Cristo.
A tristeza que Pedro tem depois de ter negado três vezes Jesus é outro exemplo deste tipo de sentimento. Ele implica a consciência de um objeto, neste caso a traição e a negação de Jesus, que motiva a tristeza.
Os dois exemplos acima citados são exemplos de respostas afetivas adequadas (a primeira positiva e a segunda negativa). Quando eu me alegro pelo mal que aconteceu com outra pessoa, que considero meu inimigo trata-se de uma resposta afetiva positiva, mas inadequada. Neste caso, a minha vontade livre cooperadora deve pronunciar um “não” rotundo contra este sentimento; decapitá-lo, por assim dizer.
O homem virtuoso, nestes termos, será aquele que responde adequadamente, não só com seus atos, mas também com seus afetos à realidade objetiva. Fica mais claro, nestes termos, o significado moral dos afetos. Abre-se, porém, uma interrogante: como se alcança essa adequação entre os sentimentos espirituais do homem e a realidade objetiva?
Tanto Aristóteles como Von Hildebrand entendem que isso passa por todo um processo educativo que começa na infância. Aristóteles, concordando com Platão, afirma que as crianças devem ser ensinadas a alegrar-se com as coisas boas e belas e entristecer-se com as más e feias[4]. Von Hildebrand afirma que as pessoas devem, desde muito cedo, passar por um processo de exposição aos valores (que são, para ele, os motivadores por excelência dos afetos e do agir moral)[5].
Penso, a modo de conclusão, que uma educação para a virtude passa, necessariamente por uma educação da afetividade. Este tema não pode ser descuidado e a preocupação por ele deve traduzir-se num atento exame de consciência. O que suscita a minha alegria? E a minha tristeza? E os meus demais afetos? Trata-se de respostas adequadas, proporcionais? É meu coração, centro da minha afetividade, um coração sadio, que se alegra com as coisas boas e belas e se entristece com o mal? A resposta a essas perguntas deve traduzir-se em algumas medidas concretas, sobretudo naqueles que têm a seu cargo a formação de crianças e jovens. Embora não possamos “produzir” artificialmente respostas afetivas adequadas, uma educação para a virtude deve preparar o caminho para seu surgimento.
[1] Cf. Ética a Nicômaco, II, 1103b, 26. Diz Aristóteles: “Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico com as outras (porque não estamos investigando apenas para saber o que é a virtude, mas para nos tornarmos bons, pois do contrário, o nosso estudo seria inútil), devemos agora examinar a natureza dos atos, ou seja, como devemos praticá-los”.
[2] Cf. Ibid., I, 1099a, 17.
[3] Cf. Von Hildebrand, D. Ética Cristiana. Barcelona: Herder, 1962, p. 334-354. Afirma Von Hildebrand que “não só é impossível imperar uma resposta afetiva de modo semelhante a como imperamos determinadas atividades corporais e mentais, senão que ademais tal possibilidade estaria em contradição com a natureza essencial e a categoria das respostas afetivas. Porque para responder com alegria ou tristeza, temos que ver diante de nós um objeto dotado de uma importância positiva ou negativa, um objeto que provoque nossa resposta (…) Quem compreende a natureza e o significado da alegria, amor ou veneração, jamais poderá desejar que estas respostas afetivas sejam acessíveis ao império da sua vontade. Porque pode ver que isto seria incompatível com a dignidade dessas respostas” (p. 337)
[4] Cf. Ob. Cit., II, 1104b, 12. Afirma Aristóteles que “a excelência moral relaciona-se com o prazer e o sofrimento; é por causa do prazer que praticamos más ações, e por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobres. Por isso, como diz Platão, deveríamos ser educados desde a infância de maneira a nos deleitarmos e de sofrermos com as coisas certas; assim deve ser a educação correta”. Platão defende a mesma ideia em Leis, 653ss. e República, 401-402.
[5] Afirma Von Hildebrand: “Ser afetado [por um valor] desempenha um papel preeminente no desenvolvimento da personalidade. Por meio desse canal vem a sedução, o envenenamento moral, o embrutecimento, o encolhimento, a contração, assim como a elevação moral, a purificação, o enriquecimento, a amplitude, a liberação. Para o pedagogo um dos meios principais para a educação moral é expor as almas dos seus discípulos a ser afetadas pelos valores. Em cada esforço para o progresso moral e religioso, este abrir-se da alma desempenha também um papel eminente” (Ob. Cit., p. 234).