Solenidade dos Fiéis Defuntos – Ao Senhor eu peço apenas uma coisa, e é só isto que eu desejo: habitar no santuário do Senhor por toda a minha vida;

1872

I. A PALAVRA DE DEUS

1ª LEITURA – Is 25,6a.7-9: O Senhor Deus destruirá a morte para sempre. Ele enxugará as lágrimas de todas as faces.

Sobre este monte, o Senhor do Universo há de preparar para todos os povos um banquete de manjares suculentos. Sobre este monte, há de tirar o véu que cobria todos os povos, o pano que envolvia todas as nações; Ele destruirá a morte para sempre. O Senhor Deus enxugará as lágrimas de todas as faces e fará desaparecer da terra inteira o opróbrio que pesa sobre o seu povo. Porque o Senhor falou. Dir-se-á naquele dia: «Eis o nosso Deus, de quem esperávamos a salvação; é o Senhor, em quem pusemos a nossa confiança. Alegremo-nos e rejubilemos, porque nos salvou.

SALMO 114/116 A : Sei que a bondade do Senhor eu hei de ver na terra dos viventes!

O Senhor é a proteção da minha vida: perante quem eu tremerei?

Ao Senhor eu peço apenas uma coisa, e é só isto que eu desejo:
habitar no santuário do Senhor por toda a minha vida;
saborear a suavidade do Senhor e contemplá-Lo no seu templo

Ó Senhor, ouvi a voz do meu apelo, atendei por compaixão! É vossa face que eu procuro.
Não afasteis com ira o vosso servo, sois vós o meu auxilio!
Sei que a bondade do Senhor eu hei de ver na terra dos viventes.
Espera no Senhor e tem coragem, espera no Senhor!

2ª LEITURA – Fl 3,20-21: O Senhor Jesus Cristo transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso

Irmãos,

Nós somos cidadãos do céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas a coisas.

EVANGELHO – Jo 11,32-45: Se você acreditar, verá a glória de Deus

Então Maria foi para o lugar onde estava Jesus. Vendo-o, ajoelhou-se a seus pés e disse: «Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido».  Jesus viu que Maria e os judeus que iam com ela estavam chorando. Então ele se conteve e ficou comovido. E disse: «Onde vocês colocaram Lázaro?» Disseram: «Senhor, vem e vê.» Jesus começou a chorar. Então os judeus disseram: «Vejam como ele o amava!» Alguns deles, porém, comentaram: «Um que abriu os olhos do cego, não poderia ter impedido que esse homem morresse?»

Jesus, contendo-se de novo, chegou ao túmulo. Era uma gruta, fechada com uma pedra. Jesus falou: «Tirem a pedra.» Marta, irmã do falecido, disse: «Senhor, já está cheirando mal. Faz quatro dias.» Jesus disse: «Eu não lhe disse que, se você acreditar, verá a glória de Deus?» Então tiraram a pedra. Jesus levantou os olhos para o alto e disse: «Pai, eu te dou graças porque me ouviste. Eu sei que sempre me ouves. Mas eu falo por causa das pessoas que me rodeiam, para que acreditem que tu me enviaste.» Dizendo isso, gritou bem forte: «Lázaro, saia para fora!» O morto saiu. Tinha os braços e as pernas amarrados com panos e o rosto coberto com um sudário. Jesus disse aos presentes: «Desamarrem e deixem que ele ande.»

Então muitos judeus, que tinham ido à casa de Maria e que viram o que Jesus fez, acreditaram nele.

II. COMENTÁRIOS

« O Senhor é minha luz e salvação; de quem eu terei medo?» Assim principia o Salmo de hoje, quando celebramos o Dia dos Fiéis Defuntos, dia em que, junto com a saudade dos nossos entes queridos que já faleceram, vem à baila a lembrança de um momento que todos tememos: o dia de nossa morte. Todos tememos a morte. Uns por estar tremendamente aferrados aos bens materiais, aos prazeres terrestres, e não pretender “perdê-los” nunca. Outros, por temerem não estar suficientemente preparados para o encontro definitivo com o Senhor, que acontecerá então.

Vindo em nosso socorro São Paulo nos lembra, na segunda leitura, que somos “cidadãos do Ceú”. De lá viemos, pela vontade do Criador e para lá voltaremos, quando Ele assim designar. E não devemos temer esse momento, mas preparar-nos para ele.

As leituras de hoje descortinam um pouco o véu deste mistério, especialmente a primeira Leitura e o Evangelho.

É extremamente difícil situar, no tempo e no momento histórico, o texto que a primeira leitura deste domingo nos apresenta.

Para uns, o oráculo pertence à fase final da vida do profeta Isaías (no final do séc. VIII a.C.), para outros, seria um texto de uma época posterior ao profeta.

Em qualquer caso, o texto constrói-se à volta da imagem do “banquete”. O “banquete” é, no ambiente sociocultural do mundo bíblico, o momento da partilha, da comunhão, da constituição de uma comunidade de mesa, do estabelecimento de laços familiares entre os convivas.

Para além de acontecimento social, o “banquete” tem também, frequentemente, uma dimensão religiosa. Os “banquetes sagrados” celebram e potenciam a comunhão do crente com Deus, o estabelecimento de laços familiares entre Deus e os fiéis. É por isso que, na perspectiva dos catequistas que redigiram as tradições sobre a Aliança do Sinai, o compromisso entre Yahweh e Israel tinha de ser selado com uma refeição entre Deus e os representantes do Povo (cf. Ex 24,1-2. 9-11).

Neste campo são, também, particularmente significativos os “sacrifícios de comunhão” (“zebâh shelamim”) celebrados no Templo de Jerusalém. Neste tipo de celebração religiosa, o crente trazia ao Templo um animal destinado a Deus. Depois de imolado o animal, a sua gordura era queimada sobre o altar, ao passo que a carne era repartida pelo oferente e pelos sacerdotes. O oferente e a sua família deviam comer a sua parte no espaço sagrado do santuário. Dessa forma, sentavam-se à mesa com Deus, celebravam a sua pertença ao círculo familiar de Deus e renovavam com Deus os laços de paz, de harmonia, de comunhão (cf. Lv 3).

É este ambiente que o nosso texto supõe.

O profeta anuncia que Deus, num futuro sem data marcada, vai oferecer “um banquete”; e, para esse “banquete”, Yahweh vai convidar “todos os povos”. Trata-se, portanto, de uma iniciativa de Deus no sentido de estabelecer laços “de família” com a humanidade inteira.

O cenário do “banquete” é “este monte” (vers. 6) – evidentemente, o monte do Templo, em Jerusalém, a “casa de Yahweh”, o lugar onde Deus reside no meio do seu Povo, o lugar onde Israel presta culto a Yahweh e celebra os sacrifícios de comunhão. Aceitar o convite de Deus para o “banquete” significará, portanto, participar no culto a Yahweh, ser acolhido na casa de Yahweh, entrar no “espaço íntimo” e familiar de Deus e sentar-se com ele à mesa.

Nesse “banquete” serão servidos “manjares suculentos”, “comida de boa gordura”, “vinhos deliciosos” e “puríssimos” (vers. 6). As expressões sublinham a abundância de vida – e de vida com qualidade – com que Deus vai cumular os seus convidados.

Para os que aceitarem o convite para o “banquete”, iniciar-se-á uma nova era, de comunhão íntima com Deus e de vida sem fim. O profeta sugere a comunhão total entre Deus e os homens que então se iniciará, com a indicação de que será removido “o véu que cobria todos os povos, o pano que envolvia todas as nações” (vers. 7) e que impedia o contato total com o mundo de Deus. Por outro lado, o profeta sugere o início da nova era de paz e de felicidade sem fim, dizendo que Deus vai destruir a morte para sempre, vai enxugar “as lágrimas de todas as faces” e vai eliminar “o opróbrio que pesa sobre o seu Povo” (vers.8)

O “banquete” termina com um cântico de ação de graças que evoca, provavelmente, uma fórmula usada na aclamação de um novo rei (vers. 9). Significa que, com o “banquete” que o Messias vai oferecer, se iniciará o reinado de Deus sobre toda a terra.

O profeta está, sem dúvida, descrevendo os tempos messiânicos. Na perspectiva do profeta, serão tempos de comunhão total de Deus com o homem e do homem com Deus. Dessa intimidade entre Deus e o homem resultará, para o homem, a felicidade total, a vida verdadeira e plena.

A partir daqui, a ideia de um “banquete messiânico” tornou-se corrente no judaísmo.

A imagem do “banquete” para o qual Deus convida “todos os povos” aponta para essa realidade de comunhão, de festa, de amor, de felicidade que Deus insistentemente nos oferece. Nunca será demais recordar isto: Deus tem um projeto de vida, que quer oferecer a todos os homens, sem exceção. Não somos “filhos de um deus menor”, pobre humanidade abandonada à sua sorte, perdida num universo hostil e condenada ao nada; somos pessoas a quem Deus ama, a quem Ele convida para integrar a sua família e a quem Ele oferece a vida plena e definitiva. A consciência desta realidade deve iluminar a nossa existência e encher de serenidade, de esperança e de confiança a nossa caminhada nesta terra. A nossa finitude, as nossas limitações, os nossos medos e misérias não são a última palavra da nossa existência; mas caminhamos todos ao encontro da festa definitiva que Deus prepara para todos os que aceitam o seu dom.

Ao homem basta-lhe aceitar o convite de Deus para ter acesso a essa festa de vida eterna. Aceitar o convite de Deus significa renunciar ao egoísmo, ao orgulho e à autossuficiência e conduzir a existência de acordo com os valores de Deus; aceitar o convite de Deus implica dar prioridade ao amor, testemunhar os valores do Reino e construir, já aqui, uma nova terra de justiça, de solidariedade, de partilha, de amor. No dia do nosso batismo, aceitamos o convite de Deus e comprometemo-nos com Ele… A nossa vida tem sido coerente com essa opção?

O capítulo 11 do Evangelho de São João relata um dos milagres mais relevantes de Jesus. Recolheu-o o quarto Evangelho, confirmando assim o poder de Jesus sobre a morte, que os Evangelhos sinóticos[1] tinham mostrado com a ressurreição da filha de Jairo (Mt 9,25) e do filho da viúva de Naim (Lc 7,12). O Evangelista apresenta em primeiro lugar as circunstâncias do fato, depois o diálogo com as irmãs de Lázaro e, finalmente, a ressurreição deste, quatro dias depois de sua morte.

A ressurreição de Lázaro é ocasião para que o Senhor mostre seu poder divino sobre a morte e dê, assim, uma prova da sua divindade, para confirmar a fé de seus discípulos e manifestar-se como a Ressurreição e a Vida. A maior parte dos judeus, exceto os saduceus (vide Mt 22,23) criam na futura ressurreição dos mortos. Essa é a fé que Marta confessa (cf vers. 24).

A volta de Lázaro à vida, além de ser um fato real, histórico, é um sinal da nossa ressurreição futura. Mas Cristo, com a Sua Ressurreição gloriosa, pela qual é o “primogênito dos mortos” (1 Cor 15, 20; Col 1,18; Ap 1,5) é também a causa da nossa ressurreição e modelo dela. Nisso se distingue a sua ressurreição da de Lázaro, visto que «Cristo ressuscitado de entre os mortos, já não morre mais» (Rom 6,9), enquanto Lázaro só volta à vida terrena para ter que morrer outra vez.

Neste Evangelho podemos contemplar a profundidade e delicadeza dos sentimentos de Jesus. Se a morte corporal do amigo arranca lágrimas do Senhor, que não fará a morte espiritual do pecador, causa da condenação eterna?

Cristo chorou pela morte de Lázaro. Choremos também nós pelos nossos pecados, para que voltemos à vida da graça pela conversão e pelo arrependimento. Não desprezemos as lágrimas do Senhor, que chora por nós, pecadores.

A humanidade santíssima de Jesus exprime a Sua filiação divina natural, não adotiva como a dos outros homens. Daí brotam estes sentimentos de Jesus Cristo que nos ajudam a compreender que quando Ele diz «Pai», afirma-o com uma intensidade e autenticidade inefáveis e únicas. Assim, quando os Evangelhos apresentam Jesus em oração, sempre realçam que começa com a invocação «Pai», refletindo o Seu amor e confiança singulares. Esses sentimentos devem dar-se também, de algum modo, na nossa própria oração, visto que pelo Batismo nos unimos a Cristo. E nEle nos tornamos filhos de Deus (cf Jo 1, 12; Rom 6, 1-11; 8, 14-17) Daqui que devamos orar sempre com espírito filial e com gratidão pelos muitos benefícios recebidos de Nosso Pai Deus.

O milagre da ressurreição de Lázaro, realmente extraordinário, é uma prova de que Jesus é o Filho de Deus, enviado ao mundo pelo Pai. E assim, quando Lázaro ressuscita, aumenta a fé dos discípulos, de Marta, de Maria e da multidão. Sejamos nós também, membros desta mesma multidão que acompanhou os fatos guiados pelo belo testemunho de São João.

III. LUZES PARA A VIDA CRISTÃ

Neste domingo, somos convidados/as a celebrar o Dia dos Fiéis Defuntos, isto é, a fazer memória de todos nossos seres queridos que já morreram, para celebrar junto com eles/as a festa da Vida sem fim, da qual eles já participam.

A morte é a marca de finitude que todo ser criado leva. Mas nossa fé cristã nos revela que não é sua condição definitiva.

Podemos afirmar que Jesus é nosso irmão defunto, ele também levou e viveu a marca da morte. Mas sua ressurreição quebrou os grilhões da morte e submergiu a humanidade numa nova vida, convertendo-se em fonte de esperança infinita.

Dessa maneira, a vocação última do ser humano e da criação é ressuscitar para sempre.

Se acreditamos que Jesus, “o primogênito dos defuntos”, venceu a morte, ressuscitou, podemos então crer que todos/as os/as outros/as irmãos/ãs defuntos/as têm sua mesma sorte, ou seja, ressuscitar, VIVER!

Celebrar esta festa nos leva, por um lado, a lembrar nossa finitude humana e, por outro, alimenta nossa esperança no banquete da vida que não tem fim, onde nos reencontraremos com todos os nossos seres amados já defuntos.

Neste domingo, os cemitérios de nossas cidades serão cobertos de flores, que manifestam o amor e o respeito que sentimos pelos nossos/as irmãos/as defuntos/as.

É um gesto que busca, de alguma forma, aproximar-nos daqueles/as que já partiram. A dor da perda nos faz ofertar o carinho que nos aproxima dessas pessoas.

E é nesse momento que precisamos escutar as palavras que os anjos dirigiram às mulheres, quando elas foram a visitar o sepulcro de nosso irmão defunto Jesus: “Por que vocês estão procurando entre os mortos Aquele que está vivo? Ele não está aqui! Ressuscitou!” (Lc 24, 5-6).

Nossa fé cristã nos permite proclamar que nossos/as irmãos/ãs defuntos/as estão vivos/as em Deus. E assim como podemos nos relacionar com Deus na pessoa de Jesus pela ação do Espírito, também é possível nos relacionar hoje com cada um/a deles/as. Mas isto não nos exime de sentir a dor que traz a partida de uma pessoa querida que não estará mais partilhando nossa vida diária.

Algumas religiões convidam as pessoas a esquecer-se dessa pessoa e quase impedem de sentir a dor de sua ausência. Há tantas coisas lindas vividas com essa pessoa que não é preciso esquecer nem apagar. Pelo contrário. Sua lembrança traz aos poucos tantas coisas bonitas, alegria partilhada, seu jeito de viver, o carinho recebido, que faz muito bem fazer memória de tudo isso.

No texto do Evangelho que lemos hoje se apresenta uma grande confiança de Marta e Maria em  Jesus, e Maria disse-lhe: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

E continua narrando o texto: “Jesus viu que Maria e os judeus que iam com ela estavam chorando”. Então ele se conteve e ficou comovido. E disse: “Onde vocês colocaram Lázaro?” Disseram: “Senhor, vem e vê”. Jesus começou a chorar. Então os judeus disseram: “Vejam como ele o amava!”

Jesus se comove, seu choro está marcado pela solidariedade com o sofrimento humano. Ele nos revela um Deus que não é imutável, ao invés, é bem sensível diante da dor, da injustiça, da morte. A ponto de ele mesmo vivê-las e sofrê-las para que a Vida tenha sempre a última palavra.

Para alcançar essa Vida, há que se colocar no caminho de Jesus, e pela fé vencer toda desesperança. Assim nos narra o evangelista: Jesus se dirige para onde está Lázaro, e suas irmãs vão com ele e o povo também.

Jesus precisa insistir quando Marta reluta na hora de retirar a pedra do túmulo: “Eu não lhe disse que, se você acreditar, verá a glória de Deus?”.

E, para deixar claro que é Deus quem obra nele e através dele, Jesus se dirige ao Pai, agradecendo que escutou sua oração pela vida de Lázaro. É Deus quem dá a vida, e a oferece àqueles e àquelas que acreditam em seu Filho, Jesus Cristo.

Peçamos ajuda à nossa imaginação para contemplar a força libertadora da palavra de Jesus: “‘Lázaro, venha para fora!’. O morto saiu. Tinha os braços e as pernas amarrados com panos e o rosto coberto com um sudário”.

Celebremos este domingo a Eucaristia por nossos/as irmãos/ãs na alegria da certeza de sua ressurreição, de sua vida, e peçamos que eles/as nos acompanhem no caminhar ao encontro com o Pai e com todos aqueles e aquelas que já partiram.

A participação nas bodas definitivas da humanidade com Deus é dom e compromisso nesta terra. É necessário que nossas vidas estejam acesas, por isso cheias de “azeite”, para ser cada dia luz que ilumina as consciências, aquece os corações, irradia amor, força e esperança na luta para que todos/as vivamos dignamente como filhos e filhas de Deus.

A esperança desta festa definitiva, onde nos encontraremos com todos os nossos seres queridos, inaugurada com o evento de Cristo Ressuscitado, é alento divino que se expressa de muitas formas, aos nossos irmãos, irmãs, no cuidado de nossa mãe terra… “Morrer não é perder tudo, mas encontrar tudo”[2].

IV – UMA PALAVRA DO SANTO PADRE

«No dia 1º, na Festa de Todos os Santos, contemplamos “a cidade de Jerusalém celeste que é nossa mãe”. Hoje, com o ânimo ainda dirigido para essas realidades últimas, comemoramos todos os fiéis defuntos, “que nos precederam com o sinal da fé e dormem o sono da paz”. É muito importante que nós, cristãos, vivamos a relação com os defuntos na verdade da fé, e olhemos para a morte e para o além à luz da Revelação. Já o Apóstolo Paulo, escrevendo às primeiras comunidades, exortava os fiéis a “não estar tristes como os outros que não têm esperanças”. É necessário também hoje evangelizar a realidade da morte e da vida eterna, realidades particularmente sujeitas e crenças supersticiosas e a sincretismos, para que a verdade cristã não corra o risco de se misturar com mitologias de vários tipos.

Na minha Encíclica sobre a esperança cristã, interroguei-me sobre o mistério da vida eterna (cf. Spe salvi, 10-12). Perguntei-me: a fé cristã é também para os homens de hoje uma esperança que transforma e ampara sua vida (cf ibid., 10)? E mais radicalmente: os homens e as mulheres desta nossa época ainda desejam a vida eterna? Ou tronou-se, porventura, a existência terrena seu único horizonte? Na realidade, como já observava Santo Agostinho, todos queremos a ida bem-aventurada”, a felicidade, queremos ser felizes. Não sabemos bem o que seja e como seja, mas sentimo-nos atraídos para ela. Esta é uma esperança universal, comum aos homens de todos os tempos e lugares. A expressão “vida eterna” pretende dar um nome a esta expectativa insuprimível: não uma sucessão infinita, mas o imergir-se no oceano do amor infinito, no qual o tempo, o antes e o depois já não existem. Uma plenitude de vida e de alegria: é isto que esperamos e aguardamos do nosso ser com Cristo (cf. ibid. 12).

Renovamos hoje a esperança da vida eterna fundada realmente na morte e ressurreição de Cristo. “Ressuscitei e agora estou sempre contigo”, diz o Senhor, “e a minha mão ampara-te. Onde quer que tu caias, cairás nas minhas mãos e estarei presente até na porta da morte. Onde mais ninguém te pode acompanhar e para onde nada podes levar, lá eu espero por ti para transformar para ti as trevas em luz”.

Mas a esperança cristã não é apenas individual, é sempre também esperança para os outros. As nossas existências estão profundamente ligadas umas às outras e o bem e o mal que cada qual pratica atinge sempre também os outros. Assim a oração de uma alma peregrina no mundo pode ajudar outra alma que está se purificando depois da morte. Eis porque hoje a Igreja nos convida a rezar pelos nossos queridos defuntos e a visitar os seus túmulos nos cemitérios. Maria, estrela da esperança, torne mais forte e autêntica a nossa fé na vida eterna e ampare a nossa oração de sufrágio pelos irmãos defuntos. (Papa Bento XVI, Angelus, 2/11/2008)

V. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA

  1.  Uma vez que Deus pode criar «do nada», também pode, pelo Espírito Santo, dar a vida da alma aos pecadores, criando neles um coração puro e a vida do corpo aos defuntos, pela ressurreição. Ele que «dá a vida aos mortos e chama o que não existe como se já existisse» (Rm 4, 17). E como, pela sua palavra, pôde fazer que das trevas brilhasse a luz (Gn 1,3), pode também dar a luz da fé aos que a ignoram (Cf. 2 Cor 4,6).

A comunhão entre a Igreja do Céu e a da Terra

954. Os três estados da Igreja. «Até que o Senhor venha na sua majestade e todos os seus anjos com Ele e, vencida a morte, tudo Lhe seja submetido, dos seus discípulos uns peregrinam na terra, outros, passada esta vida, são purificados, e outros, finalmente, são glorificados e contemplam “claramente Deus trino e uno, como Ele é”»:

«Todos, porém, comungamos, embora de modo e grau diversos, no mesmo amor de Deus e do próximo, e todos entoamos ao nosso Deus o mesmo hino de glória. Com efeito, todos os que são de Cristo e têm o seu Espírito, formam uma só Igreja e n’Ele estão unidos uns aos outros».

958. A comunhão com os defuntos. «Reconhecendo claramente esta comunicação de todo o Corpo místico de Cristo, a Igreja dos que ainda peregrinam venerou, com muita piedade, desde os primeiros tempos do cristianismo, a memória dos defuntos; e, “porque é um pensamento santo e salutar rezar pelos mortos, para que sejam livres de seus pecados” (2 Mac 12, 46), por eles ofereceu também sufrágios» (LG 50). A nossa oração por eles pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso favor.

A purificação final ou Purgatório

  1.  Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não de todo purificados, embora seguros da sua salvação eterna, sofrem depois da morte uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrar na alegria do céu.

1031. A Igreja chama Purgatório a esta purificação final dos eleitos, que é absolutamente distinta do castigo dos condenados. A Igreja formulou a doutrina da fé relativamente ao Purgatório sobretudo nos concílios de Florença e de Trento. A Tradição da Igreja, referindo-se a certos textos da Escritura (Por exemplo: 1 Cor 3, 15; 1 Pd 1, 7) fala de um fogo purificador:

«Pelo que diz respeito a certas faltas leves, deve crer-se que existe, antes do julgamento, um fogo purificador, conforme afirma Aquele que é a verdade, quando diz que, se alguém proferir uma blasfêmia contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado nem neste século nem no século futuro (Mt 12, 32). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser perdoadas neste mundo e outras no mundo que há de vir» (São Gregório Magno).

  1.  Esta doutrina apoia-se também na prática da oração pelos defuntos, de que já fala a Sagrada Escritura: «Por isso, [Judas Macabeu] pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres das suas faltas» (2 Mac 12, 46). Desde os primeiros tempos, a Igreja honrou a memória dos defuntos, oferecendo sufrágios em seu favor, particularmente o Sacrifício eucarístico para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus. A Igreja recomenda também a esmola, as indulgências e as obras de penitência a favor dos defuntos:

«Socorramo-los e façamos comemoração deles. Se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício do seu pai (Cf Jó 1, 5) por que duvidar de que as nossas oferendas pelos defuntos lhes levam alguma consolação? […] Não hesitemos em socorrer os que partiram e em oferecer por eles as nossas orações» (São João Crisóstomo).

  1.  Na anamnese[3] que se segue, a Igreja faz memória da paixão, ressurreição e regresso glorioso de Cristo Jesus: e apresenta ao Pai a oferenda do seu Filho, que nos reconcilia com Ele:

Nas intercessões, a Igreja manifesta que a Eucaristia é celebrada em comunhão com toda a Igreja do céu e da terra, dos vivos e dos defuntos, e na comunhão com os pastores da Igreja: o Papa, o bispo da diocese, o seu presbitério e os seus diáconos, e todos os bispos do mundo inteiro com as suas Igrejas.

  1.  O sacrifício eucarístico é também oferecido pelos fiéis defuntos, «que morreram em Cristo e não estão ainda de todo purificados», para que possam entrar na luz e na paz de Cristo:

«Enterrai este corpo não importa onde! Não vos dê isso qualquer cuidado! Tudo o que vos peço é que vos lembreis de mim diante do altar do Senhor, onde quer que estejais» (Santa Mônica, antes de sua morte).

«Depois [na anáfora][4], nós rezamos pelos santos padres e bispos falecidos, e em geral por todos aqueles que morreram antes de nós, certos de que isso será de grande proveito para as almas em favor das quais tal súplica se faz, enquanto está presente a vítima santa e temível […]. Apresentando a Deus as nossas súplicas pelos que morreram, tenham embora sido pecadores, nós […] apresentamos Cristo imolado pelos nossos pecados, tornando assim propício, para eles e para nós, o Deus que é amigo dos homens» (São Cirilo de Jerusalém).

NA COMUNHÃO DOS SANTOS

1474. O cristão que procura purificar-se do seu pecado e santificar-se com a ajuda da graça de Deus, não se encontra só. «A vida de cada um dos filhos de Deus está ligada de modo admirável, em Cristo e por Cristo, à vida de todos os outros irmãos cristãos, na unidade sobrenatural do corpo Místico de Cristo, como que numa pessoa mística».

  1.  Na comunhão dos santos, «existe, portanto, entre os fiéis – os que já estão na pátria celeste, os que foram admitidos à expiação do Purgatório, e os que vivem ainda peregrinos na terra – um constante laço de amor e uma abundante permuta de todos os bens». Nesta admirável permuta, a santidade de um aproveita aos demais, muito para além do dano que o pecado de um tenha podido causar aos outros. Assim, o recurso à comunhão dos santos permite ao pecador contrito ser purificado mais depressa e mais eficazmente das penas do pecado.

1476. A estes bens espirituais da comunhão dos santos, também lhes chamamos o tesouro da Igreja, «que não é um somatório de bens, como quando se trata das riquezas materiais acumuladas no decurso dos séculos, mas sim o preço infinito e inesgotável que têm junto de Deus as expiações e méritos de Cristo, nosso Senhor, oferecidos para que a humanidade seja liberta do pecado e chegue à comunhão com o Pai. É em Cristo, nosso Redentor, que se encontram em abundância as satisfações e os méritos da sua redenção».

1477. «Pertencem igualmente a este tesouro o preço verdadeiramente imenso, incomensurável e sempre novo que têm junto de Deus as orações e boas obras da bem‑aventurada Virgem Maria e de todos os santos, que se santificaram pela graça de Cristo, seguindo as suas pegadas, e que realizaram uma obra agradável ao Pai; de modo que, trabalhando pela sua própria salvação, igualmente cooperaram na salvação dos seus irmãos na unidade do corpo Místico».

  1.  Uma vez que os fiéis defuntos, em vias de purificação, também são membros da mesma comunhão dos santos, nós podemos ajudá-los, entre outros modos, obtendo para eles indulgências, de modo que sejam libertos das penas temporais devidas pelos seus pecados.

1471. A doutrina e a prática das indulgências na Igreja estão estreitamente ligadas aos efeitos do sacramento da Penitência.

O QUE É A INDULGÊNCIA?

«A indulgência é a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados cuja culpa já foi apagada; remissão que o fiel devidamente disposto obtém em certas e determinadas condições, pela ação da Igreja, a qual, enquanto dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos». «A indulgência é parcial ou plenária, consoante liberta parcialmente ou na totalidade da pena temporal devida ao pecado». «O fiel pode lucrar para si mesmo as indulgências […], ou aplicá-las aos defuntos».

AS PENAS DO PECADO

  1.  Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, deve ter-se presente que o pecado tem uma dupla consequência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, portanto, torna-nos incapazes da vida eterna, cuja privação se chama «pena eterna» do pecado. Por outro lado, todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório. Esta purificação liberta do que se chama «pena temporal» do pecado. Estas duas penas não devem ser consideradas como uma espécie de vingança, infligida por Deus, do exterior, mas como algo decorrente da própria natureza do pecado. Uma conversão procedente duma caridade fervorosa pode chegar à total purificação do pecador, de modo que nenhuma pena subsista.
  2.  O perdão do pecado e o restabelecimento da comunhão com Deus trazem consigo a abolição das penas eternas do pecado. Mas subsistem as penas temporais. O cristão deve esforçar-se por aceitar, como uma graça, estas penas temporais do pecado, suportando pacientemente os sofrimentos e as provações de toda a espécie e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte: deve aplicar-se, através de obras de misericórdia e de caridade, bem como pela oração e pelas diferentes práticas da penitência, a despojar-se completamente do «homem velho» e a revestir-se do «homem novo» (Cf Ef 4, 24).

OBTER A INDULGÊNCIA DE DEUS MEDIANTE A IGREJA

1478. A indulgência obtém-se mediante a Igreja que, em virtude do poder de ligar e desligar que lhe foi concedido por Jesus Cristo, intervém a favor dum cristão e lhe abre o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das penas temporais devidas pelos seus pecados. É assim que a Igreja não quer somente vir em ajuda deste cristão, mas também incitá-lo a obras de piedade, penitência e caridade».

VI. TEXTOS DA ESPIRITUALIDADE SODÁLITE

« Em meio a uma “cultura da acídia[5]” algum autor descrente denominou a esperança que vivem os cristãos como a “virtude dos fracos”, a qual os faria seres inúteis, ingênuos, resignados, alienados da realidade e estranhos ao progresso do mundo.

Contudo, nenhum homem pode viver sem esperança. O desânimo e a tristeza que acompanham a desesperança são considerados comumente como sintomas de que “algo não anda bem”. Esse é um dado existencial evidente. O problema dessa aproximação baseia-se tanto em deixar Deus de lado, como se Ele não existisse ou não atuasse realmente no mundo, como também na errada concepção do crente que, supostamente porque espera, não faz coisa alguma de útil, a não ser ficar resignado às circunstâncias que o determinam.

Acreditar no Senhor, crendo nEle, nos faz captar o sentido autêntico da existência. Pois toda pessoa espera em alguém ou algo. Sem essa esperança, a vida seria praticamente insuportável. Quando uma pessoa perde o horizonte vital da esperança dá um giro mortal no sentido de sua existência e vai submergindo no absurdo, abandonando tragicamente o impulso íntimo para a felicidade. Por isso Georges Bernanos dizia que “o pecado contra a esperança… é o mais mortal de todos… mas é tão doce a tristeza que o anuncia e o precede! É o mais apreciado dos elixires do demônio, seu néctar!” [6].

O QUE É A ESPERANÇA?

O Catecismo da Igreja Católica diz que “A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos Céus e a Vida Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo” [7].

A esperança se fundamenta no Dom de Deus, não em nossas próprias forças. A Sagrada Escritura nos diz que uma vez os discípulos espantados perguntaram ao Senhor Jesus: “Quem poderá então salvar-se?”, ao que Ele lhes respondeu: “Ao homem isso é impossível, mas a Deus tudo é possível”[8]. E além de ser um dom, a esperança leva à cooperação com a graça, empregando os meios dados por Deus, suscitando o esforço sério e sustentado para chegar à meta. O esforço será tanto mais enérgico e constante, quanto mais autêntica e firme seja a nossa esperança.

«Não há coisa mais desalentadora que lutar sem esperança de vitória, assim como não há coisa que mais multiplique as forças que a segurança do triunfo contanto que se lute constantemente. Esta certeza nos dá o Senhor que prometeu – e sua palavra é fiel e verdadeira – fazer partícipes de sua Vitória àqueles que na luta perseverem até o fim[9]. É que realmente “se nos fatigamos e lutamos é porque temos colocado a esperança em Deus vivo, que é o Salvador de todos os homens [10].

Ainda que o mundo esteja empenhado em nos fazer desanimar, nós, “esperando contra toda esperança” [11], devemos ser apóstolos “sempre dispostos a dar resposta a todo aquele que nos pede a razão de nossa esperança” [12].

São Paulo disse que “a caridade… tudo espera»[13] Sua caridade espera tudo?

[1] Mateus, Marcos e Lucas

[2] André Myre

[3] Uma parte da missa.

[4] Outra parte da Missa.

[5] Acídia, ou acédia – Preguiça espiritual chega a recusar até a alegria que vem de Deus e a ter horror ao bem divino. (Cat. 2094)

[6] Georges Bernanos, Diário de um pároco de Aldeia, Edições Orbis, Barcelona 1984, p. 94.

[7] Catecismo da Igreja Católica, 1817.

[8] Mt 19,26.

[9] Ver Mt 10,22; 11,22.

[10] 1Tm 4,10.

[11] Rm 4,18.

[12] Ver 1Pe 3,15.

[13] Ver 1Cor 13,7.

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