Parábase

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Não é nenhuma novidade a comparação da vida com as artes cênicas. A peça teatral*, com seu enredo, suas partes, seus atores, seus recursos de cena, improvisos, é rica fonte de comparações e ensinamentos para a conduta humana. Já Aristóteles, na sua Poética, sugeria que a principal função do teatro seria promover a catarse, ou o processo de reconhecimento de si mesmo através da observação da própria vida retratada nas tragédias, como num espelho, de forma a permitir reflexões para que melhor se lidasse com problemas pessoais não resolvidos. De fato, o que essencialmente se busca expor no palco é isto: a rica, complexa, teatral, artística conduta humana. E não há dúvida de que, qualquer que seja o empenho – maior ou menor, melhor ou pior –, cada ser humano tem uma participação obrigatória no grande espetáculo que é a Vida.

Antiga é a teatralidade humana – em todos os sentidos. Das primitivas manifestações buscando entendimento mútuo, ainda sem o uso formal da palavra, parece que desde épocas pleistocênicas (então, pleistocênicas…), originou-se e seguiu-se o teatro, inicialmente relativo às divindades, em ritos dirigidos aos deuses como agradecimento e forma de pedidos; portanto, com características de cunho religioso, desde o Egito Antigo. Assim também na China e na Índia, até chegar ao teatro grego clássico, por volta dos anos 500 a. C., considerado o berço do teatro ocidental. Ao teatro grego devemos muitas contribuições extraordinárias, pelo que nos evidenciou do panorama da conduta humana, fazendo juz ao próprio termo (theátron, “lugar aonde se vai para ver”, de théa = visão, no sentido de panorama).

Este amplo cenário, classicamente, se manifesta como drama, tragédia, comédia e tragicomédia; toda uma gama de realidades profundas da alma e da experiência do Homem. É digno de nota que, de suas origens sacras, os temas gregos (mas não só) passaram a ser palco dos feitos de heróis, e depois de aspectos mundanos: de deuses aos homens, da religiosidade para o terreno. Um caminho que parece refletir, de alguma forma, a própria história da humanidade, a partir do Pecado Original… onde o ser humano, no centro mesmo de uma produção paradisíaca, dialogou com a serpente na Árvore do Bem e do Mal e pretendeu o papel de Deus. Também na raiz do teatro grego houve a confusão – o engano – da referência à divindade por uma planta, através das procissões orgíacas a cada época de colheita das parreiras em honra de Dionísio (Baco), o deus do vinho. Nestes ritos dionísicos, ou Ditirambos, cantava-se e bebia-se até a embriaguez, o estado que permitia entrar em contato com este deus, e homens fantasiados de bodes (= tragos, em grego) encenavam o mito de Dionísio. Esta concepção explica a presença do bode nas tragédias apresentadas em tais celebrações – e eventualmente também refletem, de alguma forma, a tragédia que é a presença do demônio, representado tradicionalmente sob os traços de um bode, no contato que os homens fazem com a embriaguez da fantasia de serem deuses, mito que tragam a grandes goles.

Tão grandes se tornaram estas festividades – e as fantasias humanas – que, passando elas dos campos às cidades como Dionísias Urbanas, surgiu a necessidade de organizadores das procissões, os diretores do coro. Os componentes do coro permaneciam anônimos na sua coletividade, e tinham a função de narrar ao público as façanhas dos personagens, através de representações com máscaras, cantos e danças. E ainda hoje uma expressiva coletividade representa com máscaras, anonimamente, personagens para o grande público; canta-se, dança-se e traveste-se, enquanto muitos outros apenas assistem, distraídos e alienados. Mas, a individualidade humana não pode ser absolutamente negada, e consta que o primeiro diretor de coro conhecido e reconhecido, Téspis, inovou ao separar-se do coro, singularizando-se, e iniciando uma nova forma de apresentação, onde dialogava com o mesmo coro; logo, porém, passou-se por Dionísio, originando assim a figura do “respondedor ao coro”, ou ator – hypokrités, em grego. Chama a atenção que o primeiro papel almejado pelo homem seja o de Deus: Téspis formalizou tanto um impulso inato da natureza humana, chamada no princípio a uma plena identificação com o Criador, quanto a desmedida ambição do Pecado Original, de querer apossar-se, pelo fingimento, da natureza divina, e exibi-la diante dos outros. É o homem querendo ser Deus; o hipócrita (cf. FERNÁNDEZ-CARVAJAL, F. 1991. Falar com Deus – Volume 5. São Paulo, Quadrante, 504 p. [pág. 222]) é o ator que, com uma máscara e um disfarce, assume uma personalidade alheia, finge diante do público ser outra pessoa; oculta o próprio ser por detrás da máscara, trabalha para o público; assim eram os fariseus, que atuavam para os outros, levando uma vida falsa, de aparências, pendente do conceito dos homens, e não de olhos em Deus.

Ora, uma vida falsa, mentirosa, remete ao pai da mentira, e às duras condenações que Cristo dirigiu aos fariseus, chamando-os “hipócritas” “sepulcros caiados”, (Mt 23, 27) e “filhos do demônio” (Jo 8,44). Todo ser humano tem um papel a desempenhar no Plano de Deus, e deve ser verídico ao fazê-lo. Mas desempenhar não é o mesmo que interpretar, cuja proposta é, espiritualmente, o apanágio da hipocrisia.

Preocupante constatação, a de que atualmente, talvez mais do que em qualquer época anterior, o ser humano queira escrever por si só o texto da sua história. “A tentação do homem moderno consiste em mostrar que não temos necessidade de Deus para fazer o bem” (Paul Claudel), e nisto se resume a monumental hipocrisia hodierna, na política, na mídia, nas artes, na moral – na vida, que sem a sua essência, no Espírito de Deus, é condenação à morte, e morte eterna. Não é longa a apresentação única de cada protagonista, que breve sairá de cena; e se neste curto ato não é fiel à parte exclusiva que lhe cabe, não terá a felicidade de marcar indelével e inesquecivelmente o seu papel, com reconhecimento infinito. Dos ritos primitivos ao teatro, e deste, instintivamente, à re-presentação eucarística, tudo fala ao homem da sua vocação à maior das Artes, a de amar “Assim como Eu vos tenho amado” (Jo 13,34); quando foi que se perdeu esta “seriedade” de intenções, para tornar a vida uma peça bufa, uma tragédia? O Pecado Original fez o Homem querer ser seu próprio diretor, ensaiando uma autonomia impossível onde quer não desempenhar o seu papel, mas apenas interpretar o que de fato não é.

Parece surgir nesta situação a necessidade de uma reação ao hypokrités, para que seja possível um entendimento, um esclarecimento, que resgate o sentido do que está sendo apresentado. Àquele que passou a interpelar o coro, antepôs-se o mestre do coro, ou corifeu, seu principal representante, responsável por dialogar com os atores e intermediário também em relação ao público, com o qual se comunicava e para o qual esclarecia a encenação. A Providência Divina nos deu este corifeu – indivíduo que ocupa o primeiro lugar –, o Cristo que replica às hipocrisias, o Mestre, que Se comunica como Palavra e Verdade, apresentando-Se Ele mesmo como resposta; o intermediário único entre o único Deus e todos os que precisam de resgate no sentido de suas atuações. Do argumento que se iniciara no diálogo com a serpente, desenvolve-se agora o diálogo do homem com Deus; o cenário transubstancia-se, de Téspis que quis ser Dionísio, a Cristo que Se fez homem para dialogar com os homens.

Este diálogo, esta Palavra (que dá Vida ao vazio de um fingimento descortinado por séculos) é também o Caminho que é aberto para a manifestação (= Epifania…) definitiva de Deus ao Homem. Há uma relação direta entre o corifeu e a parábase.

A parábase é uma manifestação específica do teatro grego, que significativamente foi abandonada nos tempos modernos. É um momento da peça em que o próprio autor intervém, manifestando-se ao público, explicando suas ideias e intenções, fazendo-se conhecido e exposto aos olhares e corações dos que o veem. Esta intervenção podia ser feita também pelo corifeu. Ora, na mentalidade moderna, há muitos que não querem dialogar com, ou sequer ouvir, o Autor das suas vidas; não O veem, e pretendem assistir à passagem da existência como um mero espetáculo, surgido apenas para a sua apreciação e distração, sem qualquer compromisso de interação verdadeira; e esquecem que há um roteiro, um objetivo, um princípio e um fim, um Alfa e um Ômega, que dá sentido à apresentação – para que não seja ela apenas uma encenação. O divino Autor de nossas vidas, contudo, não desiste de Sua reiterada, diária parábase em nossas vidas, explicitada sobretudo na – espetacular – intervenção redentora de Cristo / Corifeu na História, nunca nos deixando sem direção, sem a possibilidade de compreender as Suas amorosas intenções sobre a concepção, desenvolvimento e final – feliz – da Sua obra, na qual nos deu um papel de destaque, e ao qual instintivamente buscamos para atuar. Atuar, agir: é através das nossas ações que será avaliado, ao cair do pano, o nosso desempenho. E como destacava Gustavo Corção, importante pensador católico brasileiro, o agir, diferentemente do fazer, implica numa dimensão de livre escolha moral (cf. CORÇÃO, G. 1963. As Fronteiras da Técnica. Rio de Janeiro, Agir, 290 p.).

Na lógica da divina parábase, Cristo Jesus diariamente faz a re-presentação do Seu Sacrifício no Calvário, em cada Santa Missa, e nos convida a, com Ele, Nele e por Ele, ritualizar dignamente as nossas vidas, oferecendo-as, continuamente, em espetáculo de perfeição ao Pai.

Mas há ainda uma outra conotação de parábase, como nos indica o dicionário (“Aurélio”): “na antiga tragédia, o momento dramático em que os membros do coro, despindo as vestimentas cênicas e arrancando as máscaras, recobravam suas verdadeiras personalidades e se dirigiam aos espectadores, interpelando-os em seu próprio nome ou em nome do poeta.” Eis, enfim, a nossa fala: a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus nos proporciona e exige plena identificação com Ele, e portanto somos agora igualmente protagonistas, chamados a dar uma resposta pessoal a Deus, a nós mesmos e ao próximo (de alcance apostólico), na qual, sem máscaras, devemos assumir nossa verdadeira condição de filhos de Deus. E é unicamente deste protagonismo que trata todo o propósito do theátron da Criação.

Passemos, então, da potência ao ato. Se na origem havia procissões a Dionísio, deus do vinho, sigamos agora ao Deus do Vinho Consagrado, e embriaguemo-nos apenas da Salvação; do acolhimento às Dionísias Urbanas, recebamos com muito maior entusiasmo a bênção Urbi et Orbi; do fingimento e interpretação, decidamos atuar. Pois: se Téspis alçou-se ao “tablado” (thymele – altar) apenas personificando ser um deus, nós verdadeiramente estamos elevados em Deus, por Cristo, no altar do Sacrifício Eucarístico, para legitimamente seguirmos cantando em procissão no coro, celestial, em infindo diálogo com o divino Corifeu.

José Duarte de Barros Filho   7-8; 13-15/11/2014

*As informações sobre temas teatrais citados no texto forma extraídas de:

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