“Vultum tuum, Domine…”

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Vultum tuum, Domine, requiram”; “Procuro, Senhor, a Tua face”, diz-nos o Salmo 26.

Onde encontrar a face do Senhor? Às portas da Páscoa que se aproxima, parece que o caminho quaresmal nos traz Jesus, a Quem reconhecemos como o Messias, e Lhe acenaremos em reconhecimento com os ramos da nossa oração e os mantos da esmola e do jejum, que estendemos à realeza dos Seus pés, da Sua passagem. Contudo, esta face, e esta realeza, não podem nos passar despercebidas nas feições do “outro”, dos irmãos, mais próximos ou mais distantes – especialmente os mais próximos, a quem estamos imediatamente obrigados – a quem concretamente manifestamos o desejo de encontrar o Senhor: ou então, esta Páscoa, a Passagem do Senhor, não será a ocasião na qual, com Ele, seguiremos para o Pai, mas apenas a situação de vê-Lo partir após nos ter vindo buscar, e O deixarmos ir sem nossa adesão. “Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo”: nas práticas da Quaresma, as orações para Deus, o jejum para a nossa purificação, e a esmola – caridade – para com o próximo são o reflexo do maior dos Mandamentos e guia único da nossa vida. Aí buscamos o Senhor: “Vultum tuum, Domine, requiram”.

Mas se O procuramos, só podemos fazê-lo na humildade. Pelo caminho aproxima-Se o Senhor, Ele vem ao nosso encontro, e vem na mansidão e simplicidade de um jumentinho. Não podemos recebê-Lo do alto da cavalgadura das nossas ambições e juízos próprios. Da humildade – humus, terra – brotam as sementes das palmeiras com que a Ele acenaremos as boas obras, e é de joelhos na terra, com a caridade que forramos as asperezas do caminho do irmão e cobrimos a sujeira dos nossos pecados, que poderemos ser revestidos do outro Manto, inconsútil, com que Jesus nos quer aconchegar para a Eternidade merecida para nós na Cruz. Se no humanu não há a raiz do humus – e é do barro que somos feitos – então não se fixará aí o lenho que se eleva da terra para o Céu, o lenho que abraça o irmão e a Vida, o lenho que dá frutos.

Mas também esta humildade precisa ser bem entendida. Se podemos com certeza afirmar que diante de Deus “não somos nada”, e por nós mesmos isto é fato, também é fato que, por Ele, somos, existimos, e não podemos isto negar; não cabe, não basta, e não serve de desculpa esta falsa humilhação, a não ser para uma analogia de entendimento e dentro do – bem limitado – contexto certo; ou se ainda, por um preciosismo linguístico, tomarmos radicalmente o significado de duas negações, perfazendo uma afirmação: se não somos nada, é porque somos algo… de fato, “Eu sou”, nos afirma Deus e Jesus, como essência da Sua divindade (Ex 3,14 e Jo 8,28), e podemos verdadeiramente dizer “Eu sou – conTigo, Senhor”, pois “n’Ele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28); e seja este “T”, o Taú de São Francisco (que com imensa perfeição se configurou ao Senhor), a forma (historicamente verdadeira) da Cruz que nos identifica e é penhor da nossa filiação a Deus, isto é, da expressão mais profunda do que realmente somos.

Não convém ao Homem o negativismo e reducionismo do “não sou nada”; ao contrário, somos filhos de Deus, irmãos de Jesus, filhos de Maria (cf. Catecismo da Igreja Católica), e co-herdeiros com Cristo (“Porque, se tomamos parte nos Seus sofrimentos, também tomaremos parte na Sua glória”, cf. Rm 8,17-18). Uma ideia nihilista do ser humano como tal não corresponde à dignidade com que Deus nos criou. Não se aplica ao único ser que Deus quis por si mesmo (cf. Catecismo da Igreja Católica); não é coerente com o preço, o alto preço do Sangue de Deus com que fomos resgatados (cf. 1Cor 6,20; 1Pd 1,18-19). Se buscamos ser humildes, é porque o Senhor Se fez humilde para nos servir e salvar; se somos humildes, é porque O queremos imitar, e segui-Lo é servir ao próximo; se nos humilhamos e aceitamos as humilhações da vida, é porque só assim entendemos, aceitamos e realizamos a plena dignidade de Filhos de Deus, ramos que acenam da Videira na Qual estão enxertadas e dão fruto, fruto semelhante ao que gera o Vinho Consagrado. Participamos do Sacrifício Eucarístico, aquele que é re-presentação incruenta do Sacrifício do Calvário, da Páscoa, apenas se nestes pequenos frutos das nossas ações há o doce sabor e o mesmo colorido da seiva de Cristo, que vem sempre acompanhada do roxo quaresmal do sacrifício, penitência e humildade.

Vultum tuum, Domine, requiram”. Deste modo é preciso espremer o ácido dos frutos amargos que a nossa vide produz, toda vez que, por insensatez ou por fraqueza, os cultivamos assim, à parte. Procuramos o Senhor na Confissão. Jesus bate às portas de Jerusalém, e do nosso coração; aproxima-Se em entrada triunfal, marcha mansa e soberanamente em nossa direção. Vem para recolher os frutos amargos do pecado e transformá-los no Vinho que da Cruz alimenta e dá a Vida, Vida eterna. Cabe-nos o arrependimento, o sacramento da Reconciliação, a que a Santa Igreja nos obriga, na sua sabedoria de Corpo Místico de Cristo – sim, este mesmo que foi crucificado – ao menos uma vez por ano, justamente por ocasião da Páscoa do Senhor (cf. Catecismo da Igreja Católica). No Seu amor sem fim por nós, Deus não nos quer despreparados para recebê-Lo no momento em que mais refulgentemente reina na terra, elevando-a conosco ao Céu, na ocasião da plenitude da Sua obra de misericórdia, do trono da Cruz. Dali – do Alto – Ele nos dá o exemplo, só há Ressurreição se há cruz, só há Graça se há arrependimento. Ele, “que não tinha conhecido pecado”, mas que “Deus [O] fez pecado por nós” (cf. 2Cor 5,21), Ele insiste agora pressuroso na nossa conversão, pelo exemplo nos insta à reconciliação: Ele está às portas, busquemos a Confissão. Na súplica do Salmo 26, que integra a humildade da confiança no Senhor com o pedido de defesa dos inimigos, descobrimos não apenas os adversários externos, mas o pecado, escolha interna que mata pois nos afasta de Deus que é – a Vide – e a Vida; e se entendemos que Jesus, na Cruz, também poderia ter rezado integralmente este Salmo – como mais perfeito dos Homens, como Aquele que mais buscou o Pai e Sua vontade, Aquele que foi mais perseguido pela injustiça, Aquele que mais confiou em Deus e mora na Sua casa – para nós, a realidade do pecado é mais pungente, mais homicida, e exige definitivamente a busca, a volta, o reencontro amoroso e límpido com o Senhor Jesus.

Vultum tuum, Domine, requiram”. Agora e sempre. Porque então, redimido – aceito o preço que Cristo por mim pagou na Cruz – finalmente “…no templo de Deus ofertarei sacrifícios de júbilo” (Sl 26, 6).

José Duarte de Barros Filho   9/4/2014

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