Caminho para Deus 216: Como posso rezar com a Sagrada Escritura?

1989

Como posso rezar com a Sagrada Escritura?

Não é raro encontrar-se com uma pessoa que pensa que a fé cristã é uma “religião do Livro”. Possivelmente por isso o Catecismo da Igreja Católica nos recorda que não é assim, e que o cristianismo é, bem dizendo, «a religião da “Palavra” de Deus»[1]. É uma distinção muito importante e sobre a qual vale a pena refletir um pouco. Deus quis dar-se a conhecer ao ser humano, para nos revelar quem Ele é, quem somos nós e o caminho de nossa salvação. Esse processo de revelação alcança seu cume no Senhor Jesus, a Palavra Eterna que se faz homem e nos fala em palavras humanas. A Sagrada Escritura é o testemunho inspirado pelo Espírito deste longo caminho de revelação que culmina com Jesus, o Senhor. Por isso dizemos que a Bíblia «contém a Palavra de Deus e, por ser inspirada, é realmente Palavra de Deus»[2]. A Escritura é, pois, não só fonte de ensinamento e sabedoria, como também nela nos encontramos com a Palavra de Deus. Disto decorre uma realidade que queremos ressaltar nesta reflexão: uma vez que a Sagrada Escritura é um lugar de encontro com Deus que nos fala, devemos aprender a rezar com a Bíblia. Deus se revela em palavras humanas e por isso, por meio destas palavras humanas, podemos nos encontrar com Ele, dialogar com Ele, aprender com Ele. Surge, pois, uma pergunta muito importante: Como posso rezar com a Sagrada Escritura?

Leitura da Escritura em espírito de oração

A Igreja «exorta com veemência e de modo peculiar a todos os fiéis… a que, pela frequente leitura das divinas Escrituras aprendam ‘a eminente ciência de Jesus Cristo’ (Flp 3, 8)»[3]. Esta é uma primeira forma de rezar com a Bíblia. Trata-se de ler a Escritura não como qualquer outro livro, e sim com a consciência de que é Palavra de Deus. É importante esta primeira tomada de consciência, pois nos predispõe de maneira adequada, preparando nosso coração e abrindo nossas mentes. Devemos, também, procurar um lugar tranqüilo e um tempo adequado para fazê-lo. O silêncio interior e exterior sempre são fundamentais para a oração, e o são também para uma leitura meditada da Bíblia.

Junto com isso, é necessário recordar que a Bíblia não é um livro qualquer. Ao ser inspirado pelo Espírito Santo tem que ser lido e interpretado como foi lido pela tradição da Igreja. Daí a necessidade de recorrer a comentários da tradição e do Magistério da Igreja que nos possam iluminar o sentido dos textos bíblicos.

Trata-se, então, de fazer, em espírito de oração, uma leitura que nos permita nutrir-nos continuamente dos ensinamentos e critérios divinos. Santo Agostinho «compara a meditação sobre os mistérios de Deus com a assimilação do alimento, e usa um verbo que se repete em toda a tradição cristã: «ruminar»; isto é, os mistérios de Deus devem ressoar continuamente em nós mesmos, para que se tornem familiares, orientem a nossa vida e nos nutram, como acontece com o alimento necessário para nos sustentarmos. E são Boaventura, referindo-se às palavras da Sagrada Escritura, diz que “devem ser sempre ruminadas para poderem ser fixadas com aplicação ardente do espírito”»[4].

Podemos “ruminar” a Palavra «de vários modos, lendo por exemplo um breve trecho da Sagrada Escritura, sobretudo os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, as Cartas dos Apóstolos … ler e meditar sobre o que lemos, “ruminando” sobre isto, procurando compreendê-lo, entender o que me comunica, o que me diz hoje, abrir a nossa alma àquilo que o Senhor nos quer dizer e ensinar»[5]. Esta leitura assídua da Escritura é fundamental sobretudo para conhecer e amar cada vez mais a Jesus Cristo, já que como dizia São Jerônimo “desconhecer a Escritura é desconhecer Cristo”.

A lectio: um Dom e um método

Junto a esta leitura meditada da Sagrada Escritura existe também um método de oração com a Bíblia que os filhos da Igreja utilizaram ao longo de vários séculos. É também uma leitura meditada, mas se caracteriza por ter uma série de “passos” a seguir que nos ajudam a aprofundar em uma determinada passagem bíblica. Como todo método, devemos recordar que é uma ajuda, uma maneira concreta com a qual procuramos cooperar com a graça que o Senhor derrama abundantemente sobre nós, mais ainda quando procuramos nos encontrar com Ele. Na oração é o Senhor que sai ao nosso encontro e nós que respondemos. Toda experiência de oração se inicia sempre a partir de um Dom. Como diz São Paulo, é o Espírito Santo quem nos move a clamar desde nossos corações «Abba, Pai»[6]. Nós procuramos aplicar nossa inteligência e vontade para realizar da melhor maneira possível aquilo a que somos convidados.

Esta segunda maneira de rezar com a Bíblia é a que chamamos lectio. Lectio é uma palavra latina que se traduz por “leitura”. Faz referência à Lectio divina, quer dizer, à leitura meditada da divina Escritura. Desde suas origens este método de oração conheceu diversas formas e aplicações, e é recomendado pela Igreja como uma maneira de aprofundar no sentido autêntico da Sagrada Escritura e extrair os ensinamentos que ela tem para a própria vida. É muito provável que conheçamos este método para rezar, ou conheçamos alguém que nos possa ensinar isso. Às vezes é difícil no início, mas pouco a pouco se vai aprendendo e acaba sendo uma ocasião privilegiada para aprofundar na Sagrada Escritura e nos encontrarmos com Deus.

A lectio, enquanto método de oração, é ocasião para o encontro e diálogo com Deus em apoio à meditação, aprofundamento e aplicação pessoal da Palavra divina contida na Sagrada Escritura. É importante recordar que em sua estrutura se faz distinção claramente entre o “em si” — onde procuramos compreender o que diz o texto da Escritura, para o qual é fundamental o recurso à leitura que a Igreja tem feito dessa passagem bíblica — e o “em si-em mim” — onde aplicamos a nossa própria vida o que diz o texto bíblico —.

Mediante este método procuramos fazer silêncio no coração, escutar com reverência a Palavra divina, acolhê-la na mente mediante o estudo, a reflexão e aprofundamento e acolhê-la no coração como a terra fértil acolhe a semente para fazer com que produza frutos de conversão para a vida cotidiana. Por isso um passo muito importante da lectio é nos propormos resoluções práticas e concretas que nos ajudem a pôr em prática os ensinamentos divinos, a “fazer o que Ele nos diz”[7].

O objetivo da lectio ou deste método de “ruminar” da Palavra não é sentir algo intenso, mas a própria conversão. Trata-se de avançar no processo de configuração com Cristo, nos assemelharmos cada dia mais a Ele no amor e caridade. Portanto, uma boa oração não deve ser medida pela intensidade do sentimento que possamos experimentar, mas sim pelo tanto que nos ajuda a nos aproximarmos mais de Jesus, a mudar uma conduta pecaminosa por uma conduta virtuosa. A oração é um momento privilegiado para nos renovar e dar um novo impulso no processo de “nos despojarmos e revestir-nos” de que fala São Paulo[8], graças ao encontro com o Senhor e a abertura a sua Palavra transformante.

A Escritura e nossa configuração com Jesus

Aprender a rezar com a Bíblia dá um impulso decidido ao nosso crescimento espiritual. O encontro com a Palavra de Deus nos convida a configurar nossa vida com sua Palavra. Frei Luis de Granada chamava as Sagradas Escrituras «espelho e regra de nossa vida»[9]. Nela vemos refletida nossa imagem, quer dizer, quando nos confrontamos com ela, sobretudo se o fazemos em espírito de oração, vemos se nos assemelhamos ou não à Imagem do homem perfeito, Jesus Cristo, nosso Senhor. Ao “nos olharmos” nela podemos ver com clareza tudo aquilo de que temos que nos despojar, e ao mesmo tempo descobrimos as virtudes de que temos que nos revestir para nos assemelharmos cada vez mais ao Modelo de plena humanidade.

Enquanto “regra de vida” a Escritura é fonte de critérios objetivos, divinos, evangélicos, necessários para o reto discernimento, para o rechaço das tentações[10] e para saber praticar o bem. Mas recordemos que não se trata só de aprender a viver melhor. Rezando com a Bíblia aprendemos a acolher a Palavra de Deus. Quer dizer, aprendemos a acolher Deus em nossa vida, encontrando-nos e dialogando com Ele. Isso ajudará para que todo o nosso ser se vá configurando com a Palavra de Deus, avançando assim de maneira decidida pelo caminho da santidade.

PERGUNTAS PARA O DIÁLOGO

1.   Sou consciente de que na Sagrada Escritura está contida, de modo escrito, a Palavra que Deus quis me fazer chegar para que eu alcance a vida eterna,em Jesus Cristo?

2.   Isto se reflete no espaço que lhe dou em minha vida diária? Como?

3.   Procuro cada dia escutar a Palavra de Deus, meditá-la, “ruminá-la”, guardá-la no coração e pô-la em prática, como fazia Maria?

4.   Conheço bem nosso método de oração ou lectio? Entendo bem a distinção entre o “em-si”, e o “em-si – em-mim”?

CITAÇÕES PARA A ORAÇÃO

  • A Escritura é inspirada Por Deus: 2Tim 3,14;
  • A palavra pregada pelos apóstolos é acolhida comopalavra de Deus: 1Tes 2, 13;
  • A palavra de Deus é viva e eficaz: Heb 4,12; exerce sua ação nos crentes: 1Tes 2, 13;
  • A Escritura é útil para aprender e ensinar; por ela nos preparamos para toda obra boa: 2Tim 3,15-17.
  • Não basta ler ou ouvir a palavra de Deus, é necessário pô-la em prática: Tg 1, 22-25; Mt 7, 24ss; é feliz quem põe em prática a Palavra de Deus: Tg 1, 24-25; Lc 11, 28; a própria Palavra de Deus é causa de felicidade e alegria: Jer 15,16;
  • Jesus usa“critérios divinos” para desmascarar e rechaçar as tentações: Mt 4, 4.7.10;
  • A Palavra divina é alimento para nós: Jer 15,16; Mt 4, 4; Maria guardava e “ruminava” a Palavra divina: Lc 2, 19. 51; o justo sussurra a Lei de Deus “dia e noite”: Sal 1, 1-2;

INTERIORIZANDO

O Catecismo ensina: «a fé cristã não é uma “religião do Livro”. O cristianismo é a religião da “Palavra” de Deus, “não de um verbo escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e vivo”. Para que as Escrituras não permaneçam letra morta, é preciso que Cristo, Palavra eterna de Deus vivo, pelo Espírito Santo, “abra-nos o espírito à compreensão das Escrituras»[11].

1.   O que significa a fé cristã não ser uma “religião do Livro”?

2.   Posso interpretar a Escritura “livremente”, sem ter em conta a Tradição e o Magistério da Igreja?

3.   Quais são os princípios fundamentais para uma reta interpretação da Sagrada Escritura? Ver Catecismo da Igreja Católica, 112-114.

Dizia o profeta Jeremias: «quando se apresentavam palavras tuas, eu as devorava; tuas palavras eram para mim contentamento e alegria de meu coração» (Jer 15,16).

1.   “Devoro” eu com a mesma avidez as Palavras divinas que se apresentam diante de mim? Como me aproximo da Sagrada Escritura, especialmente, dos ensinamentos do Senhor Jesus no Evangelho? Com interesse? Com fome? Como quem busca saciar sua sede em uma fonte de Água viva?

2.   Tenho a mesma atitude da Virgem, que “ruminava” os ensinamentos divinos para, a seguir, pô-los em prática?

3.   Leio a Escritura com reverência, em espírito de oração?

O beato Papa João Paulo II dizia que «a Igreja na América « deve dar clara prioridade à reflexão piedosa da Sagrada Escritura, por parte de todos os fiéis ». Esta leitura da Bíblia, acompanhada pela oração, é conhecida na tradição da Igreja com o nome de Lectio divina, prática que deve ser estimulada entre todos os cristãos»[12]. Em outro lugar dizia também que «é necessário… que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, segundo a antiga e sempre válida tradição da lectio divina: esta permite ler o texto bíblico como palavra viva que interpela, orienta, plasma a existência»[13].

1.   Faço habitualmente uma leitura bíblica, em espírito de oração?

2.   Como posso fazer para ser mais fiel e perseverante na leitura bíblica e na lectio?

3.   Procuro incorporar os “critérios divinos” — memorizando-os, por exemplo — para fazer deles um escudo contra as tentações, tal como Cristo me ensina (ver Mt 4,1ss)? Examino-me com freqüência à luz da Palavra divina?

4.   Faço da escuta e meditação da Palavra divina um “encontro vital” com ela, de tal modo que me transforme, e se converta para mim em critério de conduta? Permito que a Palavra divina me interpele, me oriente e modele minha existência?

O Papa João Paulo II ensinava: «Quando é autêntica, a familiaridade com o Senhor leva necessariamente a pensar, escolher e agir como Cristo pensou, escolheu e agiu, colocando-vos à sua disposição para continuar a obra salvífica»[14].

1.   Na oração, procuro acima de tudo “sentir algo”? Deixo de rezar, de meditar a Palavra, “porque não sinto nada”?

2.   Procuro fazer com que minha lectio me ajude a pensar, sentir e atuar cada vez mais como Jesus?

Notas

[1] Catecismo da Igreja Católica n. 108

[2] Catecismo da Igreja Católica n. 135

[3] Catecismo da Igreja Católica n. 133

[4] S.S. Bento XVI, Audiência geral, 17/08/2011.

[5] Ali mesmo

[6] Rom, 8,15

[7] Ver Jo 2,5.

[8] Ver Ef 4, 21-24.

[9] Guia de Pecadores, 1567, II,II,XX.

[10] Ver Mt 4,1ss.

[11] Catecismo da Igreja Católica n. 108

[12] S.S. João Paulo II, Ecclesia in America, 31.

[13] S.S. João Paulo II, Novo millenio ineunte, 39.

[14] Mensagem por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, 1998, n. 8.

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