Caminho para Deus 243: A confiança em Deus e a sã desconfiança de si mesmo

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Confiar em Deus e desconfiar sadiamente de si mesmo são dois meios que nos ajudam a viver a gnosis[1] (conhecimento) à qual nos convida o Apóstolo São Pedro em sua escada espiritual.  São dois hábitos necessários para o bom combate espiritual em nosso caminho para a santidade.

Deus é digno de toda confiança

Em primeiro lugar, temos que confiar em Deus.  Por que?  Porque Deus é digno de toda a nossa confiança, tão somente pelo fato de ser Ele quem é.  Deus é a Verdade, que não se engana e não nos engana.  Ele é todo-poderoso e criador de todas as coisas, providente, clemente e misericordioso, paciente e amável para conosco[2].  Deus se preocupa com suas criaturas e quer o melhor para elas, e até quando lhe somos infiéis, Ele continua sendo fiel a nós.  Com efeito, a origem do mal reside no coração de quem desconfia de Deus.  A desconfiança nEle nos conduz a desobedecer seus mandatos, ao pecado e, como consequência, a viver longe Dele, longe de quem é para nós o fundamento de nossa existência e felicidade[3].

Em troca, quem conhece Jesus Cristo conhece o Pai e o Espírito Santo[4].  Descobre que Deus é Comunhão de Amor, que tudo nEle é bom, e que todas as suas decisões e obras são boas[5].  Descobre que Ele é o Senhor da Misericórdia que constantemente nos convida à Reconciliação.  Quem realmente conhece o Senhor Jesus se vê impulsionado pelo Espírito a exclamar: em ti confio, Senhor![6]  Em resumo: quem conhece Deus, confia em Deus.  Por isso, a confiança em Deus é uma virtude que se relaciona com a gnosis, com o conhecimento de que nos fala São Pedro.

Confiar como Cristo nos ensina a confiar

Sabemos que o conhecimento cristão não é só conhecer Cristo, mas também ter «a mente de Cristo»[7], pensar como Cristo, para viver como Ele viveu.  Com efeito, tudo na vida de Cristo esteve voltado para o seu Pai Eterno[8].  Ele foi enviado pelo Pai e veio levar a cabo sua obra; viveu em uma total comunhão de vontade com o Plano do Pai; inclusive no momento mais angustiante e difícil de sua missão, o de sua Paixão e Morte, Jesus se entregou com total e absoluta confiança nas mãos do Pai, pois sabia que nunca o abandonaria e que a Cruz era o caminho para a glória[9].  Na Última Ceia, Jesus não só oferece um sacrifício que antecipa sua morte, como também celebra e dá graças pela vitória: sua Ressurreição[10].  O amor de Deus por cada um de nós, que se manifesta de modo sublime na entrega do Senhor Jesus na Cruz, é também motivo para uma total confiança nEle.

A confiança de Cristo no Pai e em seu Plano de reconciliação é modelo para nós.  Quem ama a Deus, confia nEle em todo momento.  E a isso nos anima Jesus, quando nos promete que se perdermos nossa vida por Ele, a ganharemos; quando nos promete o cento por um inclusive em meio aos sofrimentos[11].  Santa Maria é também modelo dessa confiança em Deus acima do que às vezes nossa razão humana não consegue compreender.  Assim o vemos, por exemplo, no momento do Fiat, como também durante os momentos mais difíceis da Paixão e Morte de seu Filho.

Desconfiar de nós mesmos

Em segundo lugar, temos que desconfiar de nós mesmos.  Por que?  Porque diferente do Criador, nós, seres criados, não somos perfeitos.  Muitas vezes, como é difícil compreender essa realidade e aceitar nossas naturais limitações!  Pelo contrário, nossa vaidade e orgulho nos fazem pensar frequentemente: “só eu tenho a razão”, “não me equivoco”, “eu primeiro”, “o que importa é o que me parece ou eu gosto”, etc.  Perante um mundo que propaga essa mentalidade, nós, cristãos, devemos questionar quão evangélicos são esses pensamentos.  Não estamos convidados a ser sinais de contradição e a dar testemunho de que nossa segurança está em Deus Amor e de que não a colocamos nem em nós mesmos nem nas seguranças que o mundo nos oferece?

Com efeito, em uma sociedade que muitas vezes enaltece a “confiança em si mesmo acima de tudo”, falar da desconfiança em si mesmo certamente pode soar como algo alheio à mentalidade comum ou até anacrônico.  Vivemos em uma cultura que cultua o êxito, a busca e obtenção de lucros.  A competitividade é muito forte e se alguém quer triunfar não pode ficar atrás.  Detrás destes padrões de ação muitas vezes se esconde um ideal perfeccionista que, de diversos modos, faz-nos acreditar que alguém vale pelo que faz, vale por “fazer bem as coisas”, e não tanto por quem é como pessoa.

Certamente não há problema algum em querer fazer as coisas bem.  O ponto é não confundir os planos e pretender construir nossa vida sobre pilares que largamente se mostram de barro, inconsistentes.  A “confiança em si mesmo” é algo bom sempre e quando se desenvolver em referência a um horizonte maior, aberta a Deus e a nossos semelhantes, de modo que se sustente na verdade sobre nós mesmos.  Outro é o panorama se somos autorreferentes e procuramos nos convencer do próprio valor sem uma referência além de nós mesmos.  Perde então todo valor a pergunta sobre nossa origem, nossa identidade e nosso chamado a viver na graça e na verdade para dar lugar à busca de auto-estima — uma palavra muito em moda que já de per si parece querer fundamentar nosso valor exclusivamente em nós mesmos — em busca de uma perspectiva orientada com frequência para o “êxito” entendido só em parâmetros econômicos, de bem-estar material, como se a “qualidade de vida” se medisse somente pelo ter, o poder ou o possuir prazer.

Uma vida construída sob esses parâmetros certamente dista muito da mensagem de Cristo no Evangelho, que nos adverte: «Insensato! Nesta noite ainda exigirão de ti a tua alma. E as coisas, que ajuntaste, de quem serão?»[12].  A realidade é que tudo nesta vida é passageiro.  A sabedoria de Israel já o tinha compreendido e ensinado: «Vaidade de vaidades, tudo é vaidade»[13].  Quando a confiança em si mesmo se “emancipa” de Deus, cedo ou tarde se desvirtua.

Como dizíamos, não é que seja necessariamente mal desejar a excelência de nossas capacidades, procurando “fazer as coisas bem” e sempre melhor.  O problema está na idolatria dessa perfeição mundana.  Como discípulos de Jesus estamos convidados a procurar antes de mais nada a perfeição da caridade, de modo que abundem em nós «a graça e a paz mediante o conhecimento de Deus e de Jesus, Nosso Senhor»[14].  Nesse sentido, o próprio Cristo nos chama a sermos «perfeitos como seu Pai celestial é perfeito»[15].  Só é possível responder a tal chamado a partir de uma vida na graça, o que implica muita confiança em Deus e uma sã desconfiança em si mesmo.

Sadiamente

Por que falamos então de uma desconfiança em si mesmo?  Porque assim como existe a confiança em si mesmo sem Deus, existe também a outra face da moeda: a desconfiança desmedida em si mesmo, quer dizer, a desconfiança doentia.  Viver de uma maneira infantil, sem confiar que podemos caminhar com as próprias pernas, incapazes de opções próprias e de assumir responsabilidades duradouras não é o que Cristo nos pede quando nos diz que temos que ser “como crianças” para entrar no Reino dos Céus[16].  Temos as capacidades e a dignidade que Deus nos deu, e Ele mesmo nos convida a sermos responsáveis no exercício de nossa liberdade.  Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista que muitas vezes nos equivocamos, que somos frágeis e pecadores, que necessitamos de Deus e da ajuda de nossas irmãs e irmãos.  A sã desconfiança se fundamenta, em síntese, no realismo e na humildade.

Exercitar-nos tanto na confiança em Deus como em uma sã desconfiança de si mesmo nos ajuda a “acrescentar à virtude, o conhecimento”, como nos convida São Pedro[17].  Esse exercício nos oferece, além disso, duas chaves importantes para o discernimento do Plano de Deus em nossas vidas: o que Deus é capaz de fazer, e o que nós mesmos somos capazes de fazer.  Confiemos em Deus, pois conhecemos quem Ele é.  Esse exercício nos levará a uma sã desconfiança de nós mesmos, pois sabemos de que barro somos feitos[18].  E vice-versa: desconfiemos sadiamente de nós mesmos, porque isso nos ajudará a sermos mais humildes e simples, e a olhar para Deus com um coração mais crédulo, como sempre fez nossa Mãe Santa Maria.  Desse modo, além disso, alcançaremos — da mão de Deus e como o fez Maria — grandezas insuspeitadas.

Perguntas para o diálogo

Como é sua confiança em Deus?  Essa confiança, brota de uma idéia vaga que você tem de Deus, ou do conhecimento que Ele te dá?

Como é a relação de confiança entre Jesus e seu Pai?  É esse o horizonte da confiança que desejas viver?

Você presume ou desconfia de si mesmo?  Como é essa desconfiança: sã ou doentia?

Passagens bíblicas para meditar

Confiar no Senhor: 2Cro 20,20-21; 2Mac 8,18; Sal 47,7; 118,8-9; 146,3-7; 1Jo 5,14

No meio das tribulações: Tob 5,10; 11,11-12; Sal 22,10-12.24-32; Jr 17,7-8; 2Cor 1,8-11; Heb 10,35-39

Confiança e conhecimento: Sab 3,9; Eclo 33,3; Flp 3,8-11;

Sã desconfiança em si mesmo: 2Cor 3,4-5; 9,3-11; Flp 3,3-4.

Interiorizando

«Crer na palavra divina é optar entre duas sabedorias, confiar na de Deus e renunciar a pôr a confiança no próprio sentir (Cf Prov 3,5); é também confiar na onipotência do Criador, porque tudo é obra dEle, tanto no céu como na terra (Gen 1,1; Sal 115,3.15)»[19]. Pergunte-se: Qual sabedoria você segue: a de Deus ou a de seu próprio sentir?  Você vive segundo o conhecimento que tem de Deus e que Deus te dá?

«Só a confiança em Deus pode transformar a dúvida em certeza, o mal em bem, a noite em alvorada radiante»[20].  O que você pensa a respeito dessa mensagem do Papa Francisco?  Como a aplica em sua vida?

Leia e medite a passagem do Sal 22,10-12.24-32.  Sabemos que Jesus orou interiormente com este Salmo no momento em que estava crucificado.  Você reza com a mesma confiança em Deus?  O que deve fazer para ser mais semelhante ao Senhor Jesus?  Peça-lhe sua graça para crescer nessa confiança no Pai.

«A sã desconfiança em si mesmo deve ser expressão de humilde realismo e estar acompanhada por uma forte confiança em Deus e no conhecimento construído sobre o que revelou ao homem como caminho para sua realização de acordo com o Plano de Deus.  Este conhecimento nos deveria fazer sensíveis a Deus e dóceis ao que Ele está esperando de nós em seu divino Plano».  Você é realista a respeito de si mesmo?  Você confia em Deus e vive segundo o conhecimento que você tem de seu Plano amoroso para consigo?  Você é dócil para confiar?  Que meios você pode pôr para crescer na confiança em Deus?

[1] Ver CPD 239

[2] Ver Sal 86,5

[3] Ver Gen 3, 1ss

[4] Ver Jo 14, 7.17.

[5] Ver Gen 1, 31

[6] Ver Sal 13,6; 25,2; 31,15; 56,5.12; 91,2; 143,8; Jo //9,24.38; 11,27.

[7] 1Cor 1,12

[8] Ver Jo 4, 34

[9] Ver Jo 24,7

[10]  Ver Lc 22, 19-20

[11] Ver Mt 10,38; Mc 10,29-30; Jo 12,25.

[12] Lc 12, 20

[13] Ecle 1, 2 ss

[14] 1Pe 1,2

[15] Mt 6, 1

[16] Ver Mc 10, 14

[17] Ver 2 Pe 1, 7

[18] Ver Cor 2, 4-7

[19] Xavier León-Doufour, Vocabulario de Teología Bíblica, Herder, Barcelona 2001, art.: Confianza.

[20] Papa Francisco, Pontifex_es (twit del día 11/04/2014).

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