Caminho para Deus 244: O discernimento espiritual

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Viemos refletindo, nos últimos Caminho para Deus, a respeito de alguns meios concretos que podem nos ajudar a viver, à luz do Plano de Deus, a gnosis, esse conhecimento prático ao qual nos convida São Pedro em sua escada espiritual (2Pd 1,5-7), para poder nos configurar com o Senhor Jesus.  Nesta ocasião aprofundaremos em outro desses meios: o discernimento espiritual.

O que é o discernimento espiritual?

Tomado em um sentido imediato, o discernimento é a ação pela qual se busca distinguir, diferenciar, entre duas coisas que geralmente nos parecem boas.  Na linguagem coloquial podemos dizer que uma pessoa “sem discernimento” é aquela que faz as coisas de forma impulsiva, que não é capaz de fazer um julgamento cabal sobre a realidade nem de atuar consequentemente.  A falta de discernimento pode levar, neste sentido, a agir sem sopesar bem o que se faz.

Entretanto, aqui falamos de um discernimento “espiritual”.  O que significa isto?  As Sagradas Escrituras nos oferecem luzes valiosíssimas para compreender o que significa discernir espiritualmente.  Vejamos:

Certa ocasião, aproximaram-se do Senhor Jesus uns fariseus e saduceus e, com a intenção de pô-lo à prova, pediram-lhe que lhes mostrasse um sinal do céu.  Jesus lhes responde evidenciando-lhes sua capacidade de “ler” o clima observando os sinais da natureza: «Vocês sabem discernir o aspecto do céu», diz-lhes.  Entretanto, continua, «não podem discernir os sinais dos tempos»[1].  No fim das contas o que Jesus lhes diz é: vocês são muito hábeis para discernir o clima, para prognosticar se haverá tormenta a partir das nuvens que há no céu, mas não se deram conta de que estão rodeados de sinais espirituais (os sinais dos tempos) que falam da chegada do Messias.

Também São Paulo em várias ocasiões exorta os cristãos de diversas comunidades a viver o discernimento.  Por exemplo, diante das várias experiências que surgiram na comunidade de Tessalônica, diz-lhes: «Examinem tudo e abracem o que é bom»[2].  O termo “examinar” se traduz também por “discernir” e alude à mesma ação.  Outra passagem muito iluminadora está na carta aos Romanos, onde Paulo diz: «Não se conformem com este mundo, mas transformem-se pela renovação do seu espírito, para que possam discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito. »[3].

Para poder discernir qual é a vontade de Deus, qual é seu Plano de amor para nós, São Paulo nos diz que é fundamental que nos transformemos interiormente segundo o “homem novo” que é Cristo.  A renovação da mente a que alude o Apóstolo Paulo não se produz tanto pela ação de uma lei externa mas começa no interior do homem, pela íntima iluminação do Espírito Santo que nos torna capazes de distinguir o bem do mal e de seguir o caminho do bem.  A isso nos referimos quando falamos de um discernimento espiritual.  Trata-se de uma ação que não só se realiza em nosso interior mas além disso deve fazer-se sempre em presença e sob a ação do Espírito de Deus.

À luz do que foi dito, poderíamos definir o discernimento espiritual como um exercício interior que nos leva a examinar e distinguir que situações, pessoas ou coisas nos ajudam a seguir o Plano de Deus e quais, pelo contrário nos afastam dEle.  Desta forma, abertos a ação do Espírito Santo que nos ilumina e nos impulsiona, poderemos dar à nossa vida uma orientação que nos leve à felicidade verdadeira.

O discernimento espiritual nos ajudará, então, a ir ganhando essa sabedoria, essa “ciência” da qual fala São Pedro.  Ao discernir espiritualmente procuramos iluminar uma situação concreta de nossa vida com a luz da fé, de maneira que a escolha que façamos vá pelo caminho do amoroso desígnio de Deus que busca o bem maior para nós.

Que coisas nos dificultam o discernimento espiritual?

Tudo aquilo que nos afaste da vida no Espírito se converte em obstáculo para um bom discernimento espiritual.  É responsabilidade de cada um identificar em seu interior os próprios obstáculos para um reto pensar e um reto agir: teimosia, impaciência, soberba, autossuficiência, preguiça mental, ou qualquer outro.

Aqui vamo-nos deter em três obstáculos que nos parecem relevantes: O subjetivismo, a soberba e os escrúpulos.

O subjetivismo: Este vício de aproximação a nós mesmos e à realidade dificulta examinar e discernir à luz do Plano de Deus o mundo que nos rodeia, os acontecimentos de nossa vida e as opções que devemos tomar.  Quanto mais se acentua maior será a tendência a considerar que alguém é o centro de tudo e a julgar a partir dessa premissa.  Para evitar o subjetivismo ao discernir também é particularmente importante não nos deixarmos levar por emoções ou por aquilo que nos gera uma maior ressonância sentimental.  Certamente não se trata de evitá-los, mas sim de reconhecer com humildade seu justo lugar e que em alguns casos podem afetar nossa objetividade.

Igual atenção, a um nível possivelmente mais espiritual, merece o combate contra a soberba.  Quando a soberba se afinca na mente e no coração é muito difícil dar ouvidos às moções e iluminações do Espírito Santo que poderiam estar indicando-nos o caminho a seguir.  Se estivermos “cheios de nós mesmos” dificilmente poderemos discernir à luz do Espírito.  Seremos, tal como os fariseus e saduceus do Evangelho, cegos aos “sinais” com que Deus nos manifesta sua vontade.

Também é uma dificuldade a excessiva meticulosidade que poderia nos levar a converter o discernimento espiritual em uma espécie de exaustivo e excessivo exame de todos os detalhes de nossa vida.  Se isto acontece pode ser que estejamos caindo em escrúpulos.

Os escrúpulos impedem de viver esse espírito de liberdade que o Espírito Santo dá de presente aos que vivem sob seu impulso[4].  São Francisco de Sales é enfático em recomendar que o discernimento deve ser aplicado especialmente a assuntos importantes, como, por exemplo, a escolha da vocação; decisões que possam afetar o curso de nossa vida ou que tenham certa gravidade, assuntos sérios de nossa vida espiritual.  Quanto ao resto, recomenda «fazer livremente o que nos parece bom, para não cansar nosso espírito, não perder tempo e não nos colocarmos em perigo de inquietação, de escrúpulos e de superstições» pois «nas ações miúdas e diárias, nas quais a própria falta não é de consequência irreparável, que necessidade háde mostrar-se como se estivesse carregado de ocupações, cheio de cuidados e dificuldades, e obrigado, portanto, a fazer importunas consultas?»[5].

Trata-se, pois, de discernir à luz do Plano de Deus as realidades de nossa vida que o mereçam e caminhar na direção que ele nos mostra, cooperando assim,a partir de nossa opção fundamental, com a ação de Deus que nos chama, sustenta-nos e nos impulsiona.  Como fazer isso?  Vejamos algumas coisas que nos podem ajudar a discernir melhor.

Que coisas nos ajudam a viver melhor o discernimento?

Acima de tudo, o empenho por sermos pessoas espirituais, quer dizer, que procuram viver no Espírito e segundo o Espírito.  Dessa sintonia espiritual brota uma certa conaturalidade que nos permite discernir o Plano de Deus em situações concretas à luz da fé e segui-lo com docilidade.  Como diz São Paulo, «se vivemos pelo Espírito, deixemo-nos conduzir pelo Espírito»[6].

Nesse sentido a oração é um meio privilegiado para sermos homens e mulheres espirituais.  Na oração o Senhor nos encontra mais receptivos e dispostos a escutar sua voz e as moções do Espírito Santo que nos guiam para a verdade.  Na oração encontraremos o espaço propício para um correto discernimento.

Encontramos um exemplo maravilhoso de como viver o discernimento em Santa Maria.  Quando recebe a visita do Arcanjo Gabriel que a saúda de um modo muito significativo —«Alegra-te, cheia de graça»—, Maria fica “pensando”, “discorrendo”, “discernindo” «que saudação era aquela».  Este breve mas significativo fato nos fala de uma pessoa sensível aos sinais de Deus, aberta à ação do Espírito, dócil a suas moções e generosa em sua resposta: «Faça-se em mim segundo sua Palavra».

O Apóstolo João, por outro lado, insiste na necessidade de vivermos em comunhão com Deus, Pai, Filho e Espírito Santo para podermos discernir espiritualmente.  O discernimento espiritual se baseia na fé em Jesus, Filho de Deus, que nos manifesta plenamente o Plano do Pai[7].  Só à luz da fé em Cristo e sob a ação do Espírito Santo podemos avançar na maturidade espiritual que nos configura interiormente com Jesus de maneira que alcancemos, pouco a pouco, a sabedoria e a sensibilidade para procurar sempre o Plano de Deus e viver segundo sua orientação.

Esse caminho de configuração com o Senhor Jesus passa, como vimos, por nos renovar constantemente na transformação de nossa mente.  São Paulo é muito claro ao dizer que o «homem animal (aquele que não vive segundo o Espírito de Deus) não percebe as coisas do Espírito de Deus; são para ele loucura e não pode entende-las, porque terá que julgá-las espiritualmente»[8].  Para entender as coisas de Deus devemos ter a «mente de Cristo»[9].  Isso implica nos despojarmos dos critérios que são fruto de nosso pecado, dos critérios mundanos que se opõem a Deus e a seu Plano para nos revestirmos dos critérios evangélicos.  Será, nesse sentido, de grande ajuda a meditação constante do Evangelho na oração.  Ali aprendemos a pensar como Jesus, a sentir como Ele e a atuar como Ele.

Finalmente, um elemento muito importante é a dimensão comunitária do discernimento espiritual.  Quer dizer, necessitamos a ajuda de outras pessoas que nos ajudem e iluminem a partir de sua própria experiência espiritual.  Isto é um sinal de humildade e de sã desconfiança de si mesmo.  Nesta linha, o recurso ao conselho espiritual é uma maneira muito concreta de examinar nossa mente e coração à luz do Plano de Deus.

Esta dimensão comunitária do discernimento se vê concretamente de uma forma muito clara nos Atos dos Apóstolos, quando a Igreja nascente se encontra com a necessidade concreta de atender as viúvas.  Os Apóstolos convocam uma assembleia e juntos discernem como responder a esta necessidade e decidem escolher alguns irmãos para esse ministério[10].  Com este testemunho nos mostram um belo exemplo de corresponsabilidade e de caminhar juntos na resposta ao Plano de Deus.

Passagens bíblicas para a oração

O Senhor Jesus recrimina os fariseus por não saberem discernir: Mt 16,3; Lc 12,56.

Discernir a própria consciência: 1Cor 11,28-29; Gal 6,3-4.

Discernir os carismas: 1Tes 5,21.

Discernir segundo o Plano de Deus: Rom 12,2.

O Espírito Santo nos permite discernir: 1Cor 2,10-16.

Perguntas para o diálogo

  1. O que é o discernimento espiritual?  Que importância tem para minha vida cristã?
  2. Há alguma relação entre o discernimento espiritual e a ciência que São Pedro nos convida a viver em sua escada espiritual?
  3. A que realidades da vida se aplica o discernimento espiritual?  Vale a pena discernir tudo e cada detalhe de nossa vida diária?
  4. Como viver melhor a dimensão comunitária do discernimento espiritual?

Trabalho de interiorização

  1. Leia a passagem da Anunciação-Encarnação (Lc 1,26-38) e medite em como Maria nos dá exemplo de um adequando discernimento espiritual.
  • Por que Ela pode discernir bem o Plano que Deus lhe revela?
  • Que disposições espirituais Santa Maria me ensina neste momento de sua vida e como me iluminam?

 

  1. Medite esta passagem de São Paulo:

«Deus no-las revelou pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus.Pois quem conhece as coisas que há no homem, senão o espírito do homem que nele reside? Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus.Ora, nós não recebemos o espírito do mundo, mas sim o Espírito que vem de Deus, que nos dá a conhecer as graças que Deus nos prodigalizou e que pregamos numa linguagem que nos foi ensinada não pela sabedoria humana, mas pelo Espírito, que exprime as coisas espirituais em termos espirituais.Mas o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar.O homem espiritual, ao contrário, julga todas as coisas e não é julgado por ninguém.Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo?Nós, porém, temos o pensamento de Cristo.» (1Cor 2,10-16).

  • Que elementos você encontra nesta passagem que iluminam sua vivência do discernimento espiritual?
  • Como você pode fazer para ser cada vez mais um “homem de espírito”?
  1. Escreva uma oração ao Espírito Santo pedindo a Ele que conceda a ti o dom de discernir sempre segundo o Plano do Pai e a força para segui-lo.

[1]Mt 16,3.

[2]1Tes 5,21.

[3]Rom 12,2.

[4]Ver Gal 5,1.16.22ss.

[5]São Francisco de Sales, Tratado do amor de Deus, Livro VIII, Capítulo 14.

[6]Gal 5,25.

[7]Ver 1Jo 4,13-16.

[8]1Cor 2,14.

[9]1Cor 2,13.

[10]VerAt 6,1-7.

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