I DOMINGO DA QUARESMA: Convertei-vos e crede no Evangelho!

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I. A PALAVRA DE DEUS

Gen 9, 8-15: “Aliança de Deus com Noé, salvo das águas do dilúvio.

8Disse Deus a Noé e a seus filhos:

9‘Eis que vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, 10com todos os seres vivos que estão convosco: aves, animais domésticos e selvagens, enfim, com todos os animais da terra, que saíram convosco da arca. 11Estabeleço convosco a minha aliança: nenhuma criatura será mais exterminada  pelas águas do dilúvio, e não haverá mais dilúvio para devastar a terra’.

12E Deus disse:

– ‘Este é o sinal da aliança que coloco entre mim e vós, e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. 13Ponho meu arco nas nuvens como sinal de aliança entre mim e a terra. 14Quando eu reunir as nuvens sobre a terra, aparecerá meu arco nas nuvens. 15Então eu me lembrarei de minha aliança convosco e com todas as espécies de seres vivos. E não tornará mais a haver dilúvio que faça  perecer nas suas águas toda criatura’.

Sal 24, 4-9: “Verdade e amor, são os caminhos do Senhor.”

4bMostrai-me, ó Senhor, vossos caminhos,
4ce fazei-me conhecer a vossa estrada!
5aVossa verdade me oriente e me conduza,
5bporque sois o Deus da minha salvação.

6Recordai, Senhor meu Deus, vossa ternura
e a vossa compaixão que são eternas!
7bDe mim lembrai-vos, porque sois misericórdia
7ce sois bondade sem limites, ó Senhor!

8O Senhor é piedade e retidão,
e reconduz ao bom caminho os pecadores.
9Ele dirige os humildes na justiça,
e aos pobres ele ensina o seu caminho.

1Pe 3, 18-22: “O Batismo agora vos salva

Caríssimos:

18Cristo morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados, o justo, pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus. Sofreu a morte, na sua existência humana, mas recebeu nova vida pelo Espírito.

19No Espírito, ele foi também pregar aos espíritos na prisão, 20a saber, aos que foram desobedientes antigamente, quando Deus usava de longanimidade, nos dias em que Noé construía a arca. Nesta arca, umas poucas pessoas – oito – foram salvas por meio da água.

21E a arca corresponde ao batismo, que hoje é a vossa salvação. Pois o batismo não serve para limpar o corpo da imundície, mas é um pedido a Deus para obter uma boa consciência, em virtude da ressurreição de Jesus Cristo. 22Ele subiu ao céu e está à direita de Deus, submetendo-se a ele anjos, dominações e potestades.

Mc 1, 12-15: “Foi tentado por Satanás, e os anjos o serviam. 

Naquele tempo:

12O Espírito levou Jesus para o deserto. 13E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e ali foi tentado por Satanás. Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam.

14Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo:

15«O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!».

II. COMENTÁRIOS

Neste primeiro Domingo da Quaresma, tempo de conversão e salvação, as duas primeiras leituras se relacionam com o sacramento do Batismo cristão.

O Batismo faz com que a pessoa participe concretamente do dom da reconciliação que o Senhor Jesus obteve para a humanidade inteira pelo mistério de sua Paixão, Morte e Ressurreição. Cristo «morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados … a fim de nos conduzir a Deus», escreve São Pedro (2ª. leitura). É Ele quem, pela entrega amorosa de sua própria vida no Altar da Cruz, assim como por sua ressurreição gloriosa, reconcilia-nos com Deus e se converte em fonte de vida eterna para todos os que acreditam nEle. Portanto, se «pela desobediência de um só homem [Adão] todos os outros tornaram-se pecadores, assim também pela obediência de um só todos tornar-se-ão justos; para que assim como reinou o pecado produzindo a morte, assim também reine a graça pela justificação, dando-nos a vida eterna» (Rom 5,19-21).

Graças a este sacramento todo batizado fica libertado do pecado e regenerado como filho de Deus (ver Catecismo da Igreja Católica, 1213). Deste modo, «quem está em Cristo, é uma nova criação; passou o velho, tudo é novo. E tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo» (2Cor 5,17-18).

A Igreja considera que os grandes acontecimentos da história da salvação já prefiguravam o mistério do Batismo. Assim, por exemplo, «viu na arca do Noé uma prefiguração da salvação pelo Batismo. Com efeito, por meio dela “umas poucas pessoas – oito – foram salvas por meio da água” (1Pe 3,20)». (Catecismo da Igreja Católica, 1219; ver também N. 1217) «Aquilo — segue dizendo o Apóstolo — foi um símbolo do Batismo que hoje é a bossa salvação» (2ª. leitura: 1Pe 3,21).

A passagem evangélica deste Domingo está situada no momento imediatamente posterior ao acontecimento do batismo do Senhor nas águas do rio Jordão. A Escritura diz que, uma vez batizado por João, desceu sobre Jesus o Espírito Santo em forma de pomba. Foi este Espírito que imediatamente «levou Jesus ao deserto». O verbo grego ekballei sugere que Jesus foi impelido, impulsionado com grande força pelo Espírito divino.

Os quarenta dias que Jesus passa no deserto remetem aos quarenta anos que Israel passou no deserto do Sinai, tempo intenso de purificação e prova extrema: «Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante esses quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos de teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos» (Dt 8,2). Remetem também aos quarenta dias e noites que Moisés passou no monte Sinai depois de entrar na nuvem, sinal da presença velada de Deus (ver Ex 24,19; Catecismo da Igreja Católica, 697), ou aos quarenta dias e noites que Elias caminhou em jejum pelo deserto até chegar à montanha em que Deus se manifestaria na suave brisa (ver 1Re 19,8ss).

O Senhor também é provado no deserto: «deixou-se tentar por Satanás». São Marcos, extremamente direto em seu relato, não especifica no que consistiram aquelas tentações, como o fazem em São Mateus (4,1ss) e São Lucas (4,1ss). O Senhor Jesus, como relatam estes dois últimos evangelistas, sai vitorioso da prova rechaçando a tripla tentação e rechaçando o próprio tentador: Ele guarda os mandamentos divinos e se submete em adoração unicamente a Deus. Ao dizer que «os anjos lhe serviam» São Marcos procura expressar o triunfo de Cristo, pois deve-se supor que lhe serviram depois de sua vitória sobre o tentador e não antes (ver Mt 4,11).

Depois destes quarenta dias no deserto, quando o Senhor tem notícias da detenção de João Batista, «foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus». O conteúdo essencial de sua pregação inicial é este: «O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!»

O prazo ou “completou-se o tempo” faz referência à vinda do Messias prometido, assim como ao Reino dos Céus que Ele inauguraria aqui na terra. A palavra grega hggiken, que se traduz como “está perto”, pode ser entendida como “se aproxima” ou também como “já chegou”. O Senhor Jesus em sua pregação usou-a em ambos os sentidos, tanto para falar do Reino como “já chegado”, ao identificá-lo com sua própria pessoa e seus atos, como para falar de sua chegada em um futuro próximo.

«Convertei-vos e crede no Evangelho!» é o chamado que o Senhor faz a todos. A palavra grega para falar de conversão é  metanoeite, que literalmente quer dizer mudança de mentalidade, abandonar uma forma ou modo de pensar que leva ao pecado para assumir um novo modo de pensar, a nova mentalidade proposta pelo Evangelho. Trata-se de assumir e fazer seus os critérios evangélicos ou ensinamentos do Senhor, para que estes se convertam em norma de conduta para uma nova vida. Como o ser humano atua de acordo com o que pensa e os valores que assume, o convite a uma mudança de mente implica evidentemente em um arrependimento do mal cometido e um desejo de acertar o caminho, vivendo de acordo com os ensinamentos divinos. Não existe uma mudança autêntica, profunda e duradoura se a pessoa não abandona os critérios que a conduzem a agir mal e torna seus — falamos de uma aceitação intelectual assim como de uma adesão afetiva — os critérios divinos e os ensinamentos do Senhor Jesus.

Não se trata apenas de abandonar um modo de pensar que leva ao pecado, mas sim de, simultaneamente crer no Evangelho. O que se traduz por crer provém do verbo grego pisteuete, que se pode traduzir também como ter . No Novo Testamento a fé é a crença em relação a Deus e ao que Ele revela. Quem tem fé confia em Deus porque sabe que Ele é fiel e que não mente. A fé leva, portanto, o crente a ter obediência a Deus, a viver de acordo com o que Ele ensina, a modelar a própria existência de acordo com o que Ele revela e manifesta ao homem para que viva, neste caso muito concreto, o Evangelho de Jesus Cristo.

Em seu significado original o termo evangelho não designava um livro escrito. Evangelho é uma palavra grega composta da partícula eu, que significa bom, e o essencial aggeliô, que significa anúncio, notícia, mensagem. Por isso se traduz também como boa nova. Mas esta boa nova ou boa notícia já na época de Jesus está vinculada à salvação do ser humano. É, portanto, uma mensagem que traz a salvação, um anúncio que está orientado à reconciliação do ser humano com Deus, consigo mesmo, com os outros e com a criação inteira. Por Evangelho devemos entender tudo o que Cristo pregou e ensinou, bem como sua própria Pessoa: Ele é o Evangelho vivo do Pai.

Pois bem, entre as duas primeiras leituras e o chamado do Senhor no Evangelho existe uma clara relação: o Batismo, embora liberte do pecado e regenere como filhos de Deus, não suprime a inclinação ao pecado. O Catecismo da Igreja Católica ensina que «a vida nova recebida na iniciação cristã [no Batismo] não suprimiu a fragilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação ao pecado que a tradição chama concupiscência, e que permanece nos fieis batizados a fim de que neles sirva de prova no combate da vida cristã ajudados pela graça de Deus. Esta luta é a da conversão com o objetivo da santidade e da vida eterna a que o Senhor não cessa de nos chamar» (n. 1426).

Todo batizado tem que viver, pois, com a certeza de que uma vez libertado do pecado e feito filho de Deus deve «seguir lutando contra a concupiscência da carne e os apetites desordenados» (Catecismo da Igreja Católica, 2520), bem como contra as ardilosas tentações de Satanás que «ronda como leão que ruge, procurando a quem devorar» (1Pe 5,8). Como ao Senhor Jesus no deserto, uma luta tenaz contra o Demônio e suas seduções, contra o mundo que pertence a ele, e contra seu próprio homem velho aguarda todo batizado neste mundo. Nesta luta deve-se ter a certeza e confiança de que nenhuma tentação «pode fazer mal àqueles que, não consentindo nela, resistem corajosamente pela graça de Cristo», e que nesta luta será coroado com a vitória todo aquele que sustentado pela graça divina «tiver combatido segundo as regras» (Catecismo da Igreja Católica, 1263).

Portanto o chamado à conversão e a acreditar no Evangelho é sempre atual e se dirige a todo batizado, já que a conversão, que nunca será uma meta plenamente alcançada aqui na terra, é um empenho que abrange toda a vida.

III. LUZES PARA A VIDA CRISTÃ

A tentação é uma sugestão, um convite para fazer o mal. Pode vir do demônio, do “mundo” (em seu sentido de oposto a Deus) ou do “homem velho” (ver Ef 4,22), quer dizer, de nossa própria inclinação ao mal. Percebe-se em primeiro lugar como um pensamento ou ideia que vem a nossa mente, às vezes não desejada, com capacidade de distorcer nossa razão de tal modo que terminamos vendo o mau objetivo como algo “bom para mim, em minhas circunstâncias atuais, segundo minhas necessidades do momento”, despertando nossas paixões de tal maneira que nos sentimos às vezes inclusive como que “arrastados” a agir nessa direção, com poucas forças para resistir e dizer ‘não’. Tal é sua força que muitas vezes terminamos fazendo o mal que não queríamos (ver Rom 7,15).

Mas, no que reside seu poder de sedução? Como opera? A tentação nunca nos tira nossa liberdade de escolha: é você quem escolhe entre fazer o bem ou o mal, é você quem será responsável por suas opções e atos. Sua ação se dirige ao entendimento: você escolhe. Mas para que fazendo uso de sua liberdade você escolha o mal, procurará convencê-lo para que creia que o mal que lhe propõe na realidade é um bem para você. Quem de nós pecaria se soubesse que o pecado vai produzir em nós um grande dano, que vai afundar-nos na tristeza e na solidão, que vai fazer-nos infelizes? Qual ardiloso estelionatário, quem lhe prova procurará convencer você de que “o produto que te vai vender”, produto que te vai causar a morte, na realidade é “bom e excelente para você”, algo que você “necessita urgentemente” para ser feliz, para viver plenamente, para alcançar as estrelas, para ser como deus.

Uma vez que seu entendimento enganado decide que o que é um mau objetivo na realidade é algo bom para você, sua vontade entra em jogo, quer esse pseudo-bem para você e ativa suas paixões que fazem de você uma espécie de flecha lançada para o alvo, flecha que não se detém até cravar no círculo branco. Ou por outro lado, se seu entendimento enganado pela tentação determina que algo que é um bem objetivo na realidade é um mal para você, sua vontade o rechaçará, despertando em você uma força ou paixão que o levará a separar-se ou fugir do que em realidade é um bem para você: da Cruz, por exemplo.

É paradigmática a tentação primitiva (ver Gen 3,1-6): o fruto que Deus havia dito que traria a morte a quem o tocasse ou comesse, por efeito da tentação se converte de repente em «bom para comer, apetecível à vista e excelente para obter sabedoria». Eva nunca o tinha provado, entretanto de repente tem a convicção de que na realidade é “bom para ela” porque “é bom alimento”, porque “é rico e prazenteiro”, porque a fará “sábia”, porque quando comê-lo “será como uma deusa”! A tentação leva a uma confusão da mente, do julgamento objetivo, leva a um obscurecimento da verdade e do critério objetivo (Deus lhe havia dito que comer o fruto lhe traria a morte), de modo que terminamos vendo o bem como mau, e o mal como bem. Nesse processo, e para consumar a queda, Satanás semeia habilmente a desconfiança em Deus: “por que Deus lhe proíbe algo que é bom para ti? O que acontece é que Deus é um mentiroso, um egoísta e invejoso, Ele não quer seu bem, Ele é inimigo de sua felicidade. Não O escute, escute a mim!”. E assim, em vez de escutar a voz de Deus, terminamos escutando tantas vezes a voz de quem é inimigo de Deus e inimigo nosso.

Não esqueça nunca que “com a tentação não se dialoga”. Se alguém lhe sugere ou em sua mente aparece uma ideia que incita ao que objetivamente é um mal moral, embora apareça disfarçado de “é bom para ti”, rechace-a imediatamente! Não lhe dê corda admitindo-a em sua mente! Não a grave em sua memória, em sua imaginação ou fantasia! Se você dialogar com a tentação, se acariciar a “ideia sedutora”, talvez experimente, a princípio, uma luta e tensão interior mais ou menos forte, mas cedo ou tarde cederá e terminará deixando-se arrastar pelo dinamismo da tentação até consumar o pecado. Só se desde o início você pronuncia um terminante e cortante “afasta-te Satanás”, fortalecido pela graça do Senhor terá conseguido vencer a tentação (ver Mt 4,10; Tg 4,7).

IV. PADRES DA IGREJA

São João Crisóstomo: «Porque Cristo fazia e suportava tudo para nosso ensinamento, começou, depois do batismo, a habitar no deserto. Ali lutou contra o diabo para que cada um dos batizados resistisse pacientemente às maiores tentações depois do batismo, e para que permanecesse vencedor resistindo tudo, não se perturbando se algo acontecia fora do que esperava. Pois embora Deus permita que as tentações sejam de muitas e variadas maneiras, permite-as também para que saibamos que o homem tentado se constitui na maior honra, pois o diabo não se dirige senão aos que vê em grande elevação».

Santo Agostinho: «Nossa vida, enquanto dura esta peregrinação, não pode ver-se livre de tentações; pois nosso progresso se realiza por meio da tentação e ninguém… pode ser coroado se não tiver vencido, nem pode vencer se não tiver lutado, nem pode lutar se carecer de inimigo e de tentações».

Santo Agostinho: «O próprio Senhor Jesus começou assim sua pregação: “Arrependei-vos, porque está chegando o Reino dos Céus” (Mt 4,17). João Batista, seu precursor, tinha começado da mesma forma: “Arrependei-vos porque está chegando o Reino dos Céus” (Mt 3,2). Agora, o Senhor recrimina os homens que não se convertem, estando perto o Reino dos Céus, este Reino dos Céus do qual Ele mesmo diz: “não virá de forma espetacular”, e também “está em meio de vós” (Lc 17,20-21). Que cada um, pois, seja sensato e aceite os avisos do Mestre, para não deixar escapar o tempo da misericórdia, este tempo que transcorre agora, para que o gênero humano se salve da perdição. Porque se o homem é posto a salvo é para que se converta e que ninguém seja condenado. Só Deus sabe o momento do fim do mundo. Seja quando for, agora é o tempo da fé».

São Basílio: «Até quando esperamos para nos decidir a obedecer a Cristo que chama para seu Reino celestial? Não nos vamos purificar? Não vamos deixar de uma vez este gênero de vida que levamos para seguir a fundo o Evangelho? (…) Pretendemos desejar o Reinado de Deus, mas sem nos preocupar muito pelos meios a empregar para consegui-lo. Ainda mais, pela vaidade de nosso espírito, sem nos preocupar o mais mínimo por observar os mandamentos do Senhor, acreditamo-nos ser dignos de receber as mesmas recompensas que aqueles que resistiram ao pecado até a morte. Mas quem em tempo da semeadura pôde ficar sentado e dormir em casa, e depois recolher com os braços bem abertos os feixes segados? Quem há colhido sem ter plantado e cultivado a vinha? Os frutos são para os que trabalharam; as recompensas e as coroas para os que venceram. Pois alguma vez alguém há coroado um atleta sem que este nem ao menos se vestisse para combater o adversário? E, por conseguinte, não só é necessário vencer, mas também “lutar segundo as regras”, como o diz o apóstolo Paulo (2Tim 2,5), quer dizer, segundo os mandamentos que nos foram dados».

 

V. CATECISMO DA IGREJA

As tentações do Jesus no deserto

538. Os evangelhos falam dum tempo de solidão que Jesus passou no deserto…No fim desse tempo, Satanás tenta-O por três vezes, procurando pôr em causa a sua atitude filial para com Deus; Jesus repele esses ataques, que recapitulam as tentações de Adão no paraíso e de Israel no deserto; e o Diabo afasta-se d’Ele «até o tempo determinado» (Lc 4, 13).

539. Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento misterioso, Jesus é o Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que o primeiro sucumbiu à tentação. Jesus cumpre perfeitamente a vocação de Israel: contrariamente aos que outrora, durante quarenta anos, provocaram a Deus no deserto, Cristo revela-Se o Servo de Deus totalmente obediente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o Diabo: «amarrou o homem forte», para lhe despojar do que se apropriou. A vitória de Jesus sobre o tentador, no deserto, antecipa a vitória da paixão, suprema obediência do seu amor filial ao Pai.

A conversão dos batizados

1427. Jesus chama à conversão. Tal apelo é parte essencial do anúncio do Reino: « O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!»(Mc 1, 15). Na pregação da Igreja, este apelo dirige-se, em primeiro lugar, àqueles que ainda não conhecem Cristo e o seu Evangelho. Por isso, o Batismo é o momento principal da primeira e fundamental conversão. É pela fé na boa-nova e pelo Batismo que se renuncia ao mal e se adquire a salvação, isto é, a remissão de todos os pecados e o dom da vida nova.

1428. Ora, o apelo de Cristo à conversão continua a fazer-se ouvir na vida dos cristãos. Esta segunda conversão é uma tarefa ininterrupta para toda a Igreja, que «contém pecadores no seu seio» e que é, «ao mesmo tempo, santa e necessitada de purificação, prosseguindo constantemente no seu esforço de penitência e de renovação». Este esforço de conversão não é somente obra humana. É o movimento do «coração contrito» (Sal 51, 19) atraído e movido pela graça (ver Jo 6, 44; 12,32) para responder ao amor misericordioso de Deus, que nos amou primeiro (ver Jo 4, 10).

O Batismo não suprime a concupiscência: somos chamados ao combate espiritual

1426. A conversão a Cristo, o novo nascimento do Batismo, o dom do Espírito Santo, o corpo e sangue de Cristo recebidos em alimento, tornaram-nos «santos e imaculados na sua presença» (Ef 1, 4), tal como a própria Igreja, esposa de Cristo, é «santa e imaculada na sua presença» (Ef 5, 27). No entanto, a vida nova recebida na iniciação cristã não suprimiu a fragilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação para o pecado, a que a tradição chama concupiscência, a qual persiste nos batizados, a fim de que prestem as suas provas no combate da vida cristã, ajudados pela graça de Cristo. Este combate é o da conversão, com o objetivo da santidade e da vida eterna, a que o Senhor não se cansa de nos chamar.

VI. TEXTOS DA ESPIRITUALIDADE SODÁLITE

A Igreja nos convida, na Quaresma, a «redescobrir nosso Batismo» e «experimentar a graça que nos salva», que nos faz ser verdadeiros filhos de Deus, participantes da herança prometida pelo Pai. Viver segundo essa dignidade implica uma renúncia radical ao Maligno e ao pecado. Implica uma opção por nos despojar cotidianamente de nossa velha condição, para nos revestir da graça que Cristo nos dá, o «homem novo».

Conversão significa, pois, uma mudança de rumo integral, de toda nossa vida, para a vida plena e reconciliada para a qual nos chamou o Senhor. Significa optar por Ele sem medos nem covardias. Implica em uma mudança de mente, de critérios e atitudes, que tem como primeiro passo a humildade. Quer dizer, implica caminhar na verdade, reconhecendo-nos pecadores necessitados constantemente da graça e do perdão de Deus.

Um excelente meio para conhecer a verdade e caminhar nela é a oração. Pela oração, encontramo-nos com o Senhor e escutamos sua voz. Dele brota a luz que ilumina nosso interior e que nos permite descobrir quem somos, o que devemos fazer, por que estradas caminhar. No encontro com Cristo na oração nos descobrimos, como Moisés, em «terra Santa». Santo Agostinho fez uma analogia entre essa «terra Santa» e a Igreja: «sendo, pois, ela, a terra onde nos achamos, devemos tirar nossas sandálias, ou seja, renunciar às obras mortas». Com efeito, não é digno da condição de cristãos batizados viver no pecado. O encontro com Jesus, «Luz do mundo», deve-nos impulsionar para que reflitamos essa luz com nossas boas obras, para assim dar glória a nosso Pai celestial, no Espírito Santo. «Conversão» significa deixar que o Senhor Jesus entre em nossas vidas, para nos conformar com Ele. Cabe a nós trabalhar para tirar de nós o que nos sobra, e acrescentar o que nos falta segundo a medida de Cristo. Sobra-nos o pecado e nossos vícios; falta-nos a virtude, as boas obras.

Vivamos nessa Quaresma procurando nos configurar com o Senhor Jesus. Não tenhamos medo a renunciar ao pecado de forma radical, aproveitando as mortificações do caminho para nos unir a sua Cruz, e trabalhando por crescer na virtude, especialmente na caridade através do serviço fraterno. Recordemos aquelas belas palavras de S.S. Bento XVI: «Não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada, Ele dá tudo. Quem se dá a Ele, recebe o cento por um. Sim, abram, abram de par em par as portas a Cristo, e encontrarão a verdadeira vida».(Caminho para Deus n.205).

Ao chamar todos os homens à conversão, o Senhor Jesus e seus apóstolos utilizam no Novo Testamento a palavra metanoia (Mc 1, 14), que quer dizer mudança de mentalidade. Não se trata apenas, explica o Santo Padre, de um modo distinto de pensar a nível intelectual, mas sim da revisão do próprio modo de agir à luz dos critérios evangélicos (Ecclesia in America, 26). Com efeito, a conversão (metanoeite), a que cada ser humano está chamado (Ecclesia in America, 32) consiste no esforço de assimilar os valores evangélicos que contrastam com as tendências dominantes no mundo (Ecclesia in America, 28). Supõe nos despojar dos pensamentos, sentimentos, condutas e hábitos que se opõem ao Plano de Deus ou prescindem dele, para nos revestirmos daqueles pensamentos, sentimentos e condutas do Senhor Jesus. É um processo animado pela graça no que se crê toda a vida contando com nossa livre colaboração. O Senhor Jesus, ao ser tentado no deserto, assinala-nos com sua atitude a importância e urgência de tal assimilação integral. Mostra que a única maneira de resistir e vencer com êxito as múltiplas tentações que irão aparecendo em nosso caminho de conversão é a oposição pronta e radical: com a tentação jamais se dialoga (Gen 3, 1-6), rechaça-se imediatamente opondo-lhe os critérios evangélicos (Mt 4, 4.7.10).

A conversão não tem, pois, só um aspecto negativo, que é a luta contra as tentações e tendências pecaminosas que há em nós. O horizonte da conversão é eminentemente positivo, e aponta à santidade (Ecclesia in America, 30). O próprio Pai é quem nos assinalou a meta: ser Santos como Ele mesmo é Santo (Lev 11, 44-45; Mt 5, 48). E mais, deu-nos e assinalou O Caminho (Jo 14, 6) pelo qual todos podemos alcançar efetivamente tal perfeição e santidade: no Filho, que revelou a toda pessoa humana o modo de chegar à plenitude de sua própria vocação (Ecclesia in America, 10; Gaudium et spes, 22), e nos alenta com a certeza que aspirar a chegar ao estado de homem perfeito (Ef 4, 13) não é impossível. (Caminho para Deus n.61)

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