Caminho para Deus 239 – O conhecimento na Direção de São Pedro

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Em sua segunda carta, São Pedro nos ensina que devemos «acrescentar à virtude, o conhecimento» (2Pe 1,5).  Em Caminhos para Deus anteriores já meditamos sobre o significado da [1] e da virtude[2].  Agora, vamos aprofundar-nos no que significa esse conhecimento ao qual São Pedro nos convida, tão importante em sua escada espiritual para a perfeição da caridade.

Por que é importante meditar sobre o conhecimento?

Na escada espiritual de São Pedro, a virtude tem como horizonte a recuperação da unidade pessoal, o senhorio de nós mesmos.  Este primeiro passo, aos olhos do Apóstolo, requer, a seguir, outro degrau, pois mesmo que avancemos por um caminho de maestria pessoal necessitamos também adquirir a sabedoria necessária para o «bom combate» da fé.  O segundo passo na Direção de São Pedro precisamente faz alusão a uma sabedoria, um entendimento que dirige nossa virtude e a encaminha retamente segundo o Plano de Deus.  Podemos ilustrar isso com um exemplo: Ainda que tenhamos um automóvel, e o preparemos para uma grande viagem, de nada nos servirá ter tudo preparado se não soubermos como dirigir ou qual é o caminho.  Um pouco parecido ocorre com o caminho à santidade: precedidos e acompanhados pela graça de Deus, podemos viver a virtude, refinando e educando nossa vontade, mas se a ela não acrescentamos o conhecimento, é muito provável que erremos o caminho.  Neste sentido, o conhecimento vai ajudando a conhecer o caminho necessário para avançar segundo o Desígnio divino.

O que não é o conhecimento?

A palavra conhecimento provém de um termo grego: gnosis. Atenção: não se deve confundir a gnosis de que fala São Pedro com as correntes gnósticas, próprias do paganismo antigo, que postulavam um conhecimento do tipo esotérico, do qual se excluía os não iniciados. Os gnósticos viam o ser humano e o mundo inteiro como frutos de uma suposta divisão radical entre a matéria e o espírito, e postulavam a maldade do material e a bondade do espiritual (que estaria, para eles, como que “aprisionado” no material).  A salvação, para eles, estava na negação do material, e na exaltação do espiritual pela via do conhecimento (gnosis) que emana do cosmos como um “todo”.  O gnosticismo antigo tomou diferentes formas ao longo da história, inclusive misturado com elementos supostamente cristãos, e ainda hoje está muito presente em nossa cultura, de modo reciclado, nos movimentos esotéricos ou New Age, propagando um neopaganismo.

Quando aparece a palavra conhecimento (gnosis) na Sagrada Escritura, não devemos lê-la nesse sentido pagão; interpretá-la dessa forma seria incoerente com o pensamento de Israel, de Jesus Cristo e dos primeiros cristãos.  Para eles, a gnosis significava outra coisa.

Tampouco se trata de ter um conhecimento exclusivamente teórico da Revelação, ou de sermos muito eruditos e instruídos.  Às vezes, quando se fala de conhecimento, pensa-se, em um primeiro momento, no estudo, nas aulas ou em qualquer outro lugar de aprendizagem.  Como é natural, alguns alunos, por suas capacidades, serão aí melhores do que outros.  Se assim fosse, a santidade seria uma busca de graus acadêmicos, de alturas intelectuais e, por conseguinte, uma meta acessível só para uns poucos.  A santidade é algo muito diferente de uma ciência que infla o orgulho e que nos pode levar a ser uns “sabichões”.

O que é, então, o conhecimento na Escada Espiritual?

Em poucas palavras, é a aprendizagem do caminhar cristão iluminado pelas verdades da fé, um viver o que conhecemos pela revelação divina.  É a inteligência prática da vida humana à luz de Cristo que nos ajuda, sobre tudo, em nosso combate espiritual para avançar pelo caminho da santidade.

Um autor espiritual dizia que este conhecimento que São Pedro nos propõe é a «ciência dos Santos».  Precisamente os Santos se deixam iluminar pela Revelação e aprendem a ver mais claramente como viver a fé em sua vida cotidiana.  Com a graça de Deus, nós também podemos aprender esta «ciência dos Santos».  Trata-se de uma ciência em que todos, sem exceção alguma, podemos, com a ajuda de Deus, ser “sábios” e grandes conhecedores. Então, o grande letrado ou o cientista genial não necessariamente terão uma “ciência” mais elevada. Por outro lado, possivelmente o camponês humilde ou o simples operário poderá possuir em altíssimo grau desta «ciência dos Santos».

Superando a ruptura entre fé e vida

Paradoxalmente vivemos em uma época em que se exalta o conhecimento e a aprendizagem, as comunicações e a informação, mas em que também é cada vez mais difícil fazer com que as pessoas se concentrem no essencial, que pensem lógica e rigorosamente, que tirem conclusões objetivas ou que façam uma boa crítica.  Dia após dia, costumamos menosprezar a profundidade da realidade e privilegiar o efêmero, as sensações, as ilusões, as fortes emoções e os sentimentos.  Vivemos na era dos grandes subjetivismos, do conhecimento fragmentado, das “especializações” que nos dificultam ver o panorama completo das coisas.  Vivemos, portanto, em uma época em que é cada vez mais difícil acreditar na verdade.  E quando se perde o norte da verdade, então cada um começa a pensar que sua verdade é a verdade, ou que é uma a mais em um mundo confuso, no qual a verdade não existe.

Mas não podemos nos deixar levar por essa corrente do mundo, que o então Cardeal Ratzinger chamava «ditadura do relativismo»[3].  Tal corrente nos afasta do ideal da santidade, pois sabemos quem é a verdade: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6). O Senhor Jesus nos ensina que Ele é a verdade, e quem o conhece encontra a verdadeira liberdade: «Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará» (Jo 8,32).

O conhecimento da Direção de São Pedro é um aderir-se vitalmente a Cristo Jesus, em quem encontramos a verdade sobre Deus e a verdade sobre o ser humano[4].  Caminhar na verdade é caminhar em Jesus Cristo, vivendo segundo seus ensinamentos.  Concretamente, no dia a dia, a gnosis cristã nos leva, por exemplo, a saber distinguir o bem e o mal, a discernir o bom e o correto daquilo que nos escraviza e faz mal, a viver a justiça em situações concretas.  Trata-se de viver com um norte, tendo as verdades da fé como uma constante bússola espiritual.

Vemos, pois, que esse conhecimento em sentido cristão não é só teórico: é o conhecimento adquirido pela própria vivência da fé na vida.  É prático.  Por que? Porque caminhar à luz de Cristo não significa caminhar segundo conceitos puramente teóricos.  Significa viver.  Conhecem Deus os que vivem segundo o que Ele ensinou (ver Jo 15,13-14), os que vivem em comunhão com Ele (ver Jo 10,14-15).

Conhecimento e Amor

A meta da vida cristã é a santidade, quer dizer, a perfeição na caridade.  Para chegar a essa meta, o conhecimento irá guiando no caminho do amor, no caminho para a santidade.  Mas que relação há entre conhecimento e amor?

Recordemos o seguinte: ninguém pode amar o que não conhece.  Por exemplo: se eu não souber quem é a pessoa, não posso amar essa pessoa; ou se não sei como é a casa que querem vender para mim, é virtualmente impossível que eu queira comprá-la, e assim podemos pôr muitos exemplos que nos evidenciam a relação que há entre conhecimento e amor.  Portanto, se estivermos no “caminho para Deus”, e esse caminho é um caminho de amor a Ele e aos outros, não podemos percorrer esse caminho sem a gnosis, sem um conhecimento de Deus e de seu Plano que ilumine nosso andar cotidiano.

Não podemos amar a Deus se não nos abrirmos a sua graça, se não nos deixamos iluminar por Ele e se não vivermos segundo o que Ele nos ensina.  Ao contrário, se nos abrirmos a Ele, chegaremos a «conhecer o amor de Cristo, que excede todo conhecimento» (Ef 3,18).  Todos podemos ser sábios nesta ciência, porque Deus chama todos a serem Santos e nos ajuda sempre com sua força e sua graça para alcançar este grande ideal.

Citações para a oração

Abrir-se ao mistério de Cristo: Jo 10,14-15; 15,13-14; Ap 3,20

Conhecimento que transforma a existência: Rom 1,28; 1Tim 2,3-4

Conhecimento que não se esgota: Ef 3,18; 2Pe 1,2-3; 3,18; 1Cor 8,2-3

Ciência prática dos afazeres cristãos: Rom 15,14; Flm 1,4-6

Discernir os caminhos de Deus: Ef 5,17; Col 1,9-10

Perguntas para o diálogo

  1. Que diferença existe entre o conhecimento do qual fala São Pedro e os outros tipos de conhecimentos?
  1. Você considera que em sua vida cristã existe um divórcio entre o que você crê e o que você vive? Entre a teoria e a prática? Se a resposta for afirmativa, a que se deve isto?
  2. Você entende a importância do conhecimento em seu combate espiritual?
  3. Que relação você vê entre conhecimento e amor?

Trabalho de interiorização

1.         A  gnosis…

«Não é só um conhecimento das verdades de fé, mas sobretudo o uso sábio deste conhecimento, muito na linha da sabedoria ou prudência cristã.  A gnosis se refere “tanto à inteligência da Palavra de Deus como também ao discernimento da vontade divina, à sagacidade na sabedoria prática que o instinto tem para fazer o bem e evitar o mal”.  Por meio da gnosis da qual São Pedro fala podemos iluminar nossa existência para que esta seja vivida de acordo com o Plano de Deus.» (Kenneth Pierce, A escada espiritual de São Pedro, FE, Lima 2010, P. 124)

Você percebe a importância do conhecimento de Deus e de seu Plano para que possa optar pelo bom e o pelo verdadeiro na prática de sua vida cristã?  Você tem consciência das vezes em que atua sem a prudência em sua vida, sem se perguntar se o que você está fazendo está ou não de acordo com o Plano de Deus.

2.         “Alguém só pode amar o que conhece”.  O que você pensa desta frase?  Se você professa o amor a Deus, a si mesmo como Deus te ama, e ao próximo como a si mesmo, então quanto você conhece de Deus?  Até que ponto você se conhece à luz de Deus?  Quanto você conhece os outros segundo Deus os conhece?

3.         Entendendo o sentido cristão da palavra gnóstico (quem conhece o mistério de Cristo e vive segundo isso), leia este texto de Clemente de Alexandria, que afirma que o acesso à salvação…

 «é o resultado da ação correta: portanto, toda ação do gnóstico pode ser chamada ação concreta.  A do simples crente é uma ação intermediária, que ainda não foi feita corretamente de acordo com o conhecimento. A de todos os que se afastam da salvação é ação pecaminosa.  Pois não se trata de apenas fazer as coisas bem, mas sim de atuar com certa meta boa, e de acordo com o conhecimento, que as Escrituras nos assinalam como requisito». (Clemente da Alexandria, Stromata, VI, 14)

Reflita: A que ponto me contento em ser bom e não procuro ser santo, atuando segundo o conhecimento de Cristo?  Quanto minhas ações cotidianas perseguem a “meta boa”, que é a santidade à qual Deus me chama?

4.         O Concílio Vaticano II nos ensinou que «o mistério do homem só se esclarece no mistério do Verbo Encarnado» (GS 22).  Pergunte a si mesmo: Deixo-me penetrar pelo mistério de Cristo?  Tenho medo desse conhecimento, acomodo-me, ou penso que é “para os outros” e não para mim?  Deixo que seu mistério ilumine o mistério de minha existência?


[1] Ver Caminho para Deus, nº 225

[2] Ver Caminho para Deus, nn. 23, 41 e 211

[3] Card. Joseph Ratzinger, Homilia na Missa “Pro eligenda Pontífice”, Roma, 16 de abril de 2005.

[4] Ver Gaudiun et spes, nº 22

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