Recompensa de Deus

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Tudo o que a Sagrada Escrita registrou é fonte de sabedoria e crescimento espiritual. A Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo, nos conduz de formas muitas vezes inusitadas pelos caminhos que Deus escolhe para Dele nos aproximarmos. Assim é que “O Espírito sopra onde quer” (cf. Jo 3,8), e os desígnios de Deus se desdobram por caminhos que frequentemente confundem os juízes deste mundo e resplandecem nos humildes (cf. Mt 11,25; Lc 10,21). No contexto da manifestação do Espírito Santo em Pentecostes, pode-se observar um dentre os incontáveis meios de que Deus Se utiliza para o bem da Sua Igreja e dos seus filhos, na figura do fariseu Gamaliel.

            Sabe-se de Gamaliel que era um prestigiado Doutor da Lei entre os judeus (At 5,34), e que por este motivo foi ouvido no Sinédrio quando, após o início da pregação dos Apóstolos em Jerusalém, foram estes presos, e estavam em vias de serem mortos (At 4,33). A exposição de Gamaliel é consumada sabedoria e prudência (que nos vêm do Espírito Santo): “Quanto ao que está acontecendo agora, dou-vos um conselho: não vos preocupeis com estes homens e deixai-os ir embora. Porque, se este projeto ou esta atividade é de origem humana será destruído. Mas, se vem de Deus, vós não conseguireis eliminá-los. Cuidado para não vos pordes em luta contra Deus!” (At 5,38-39). O bom senso deste argumento é irrefutável, ainda mais precedido que foi pelos exemplos de anteriores movimentos populares fracassados entre os judeus, obras meramente humanas e portanto efêmeras (At 5,36-37); só Deus tem palavras de vida eterna (cf. Jo 6,68). Ainda assim, na circunstância dos ânimos exaltados e da ira contra os Apóstolos, não deve ter sido fácil a iniciativa de Gamaliel, nem a aquiescência do Sinédrio, dois aspectos que nos falam igualmente da Providência divina, mesmo considerando sempre a liberdade humana.

            Muitas reflexões podem ser tiradas deste episódio. A ideia mais central e imediata é, naturalmente, que nada nem ninguém pode se opor à obra de Deus, Todo Poderoso, Criador de tudo o que existe e Senhor da História. Mesmo os acontecimentos desagradáveis e dificuldades da vida podem ser vias pelas quais Deus nos pode conduzir a Ele – “tudo contribui para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8,28). O fato de que nossa limitação de criaturas não alcança todo o horizonte da ação divina, que desde sempre sabia dos nossos pecados e falhas, não muda a previsão e os cuidados divinos para com a humanidade. Já antes do Pecado Original, na rebelião de Lúcifer, a ação do serafim Miguel, que o derrota (Ap 12,7-8), explicita o poder de Deus (bem como o livre arbítrio, através do qual ele pode se manifestar), como dá a entender o próprio nome deste anjo – “Quem como Deus?”, em hebraico Mi-ka-el. Nada acontece ao acaso; ou, como afirmou o pensador católico Léon Bloy, “O acaso é o deus dos imbecis”.

            Ora, se há uma Vontade de Deus, que tudo abarca e reconcilia para o nosso Bem, é prudência e humildade o desprender-se do tudo querer controlar, na própria vida e na vida alheia – a ânsia de querer impor a própria vontade, definir o que é bom ou mau, certo ou errado – o resquício do primeiro pecado –, para aceitar a vontade de Deus e o que Ele permite. É coerência com o que se pede na oração do Pai Nosso, ensinada pelo próprio Jesus: “Seja feita a Tua vontade” (Mt 6,10).

            Há portanto uma exigência cristã de discernimento e visão sobrenatural para com o cotidiano, especialmente se, apesar de muitos e sinceros esforços, não se alcança algo pretendido. Também aqui é a ação do Espírito Santo que torna possível esta compreensão, este arejar de alma que eleva a Deus e enleva o entendimento, tornando capaz ao Homem ver a beleza escondida pelo Pai nas coisas simples, e nas contradições.

            Por outro lado, a aceitação cabal dos contratempos e sofrimentos não significa, de forma alguma, um convite à tibieza e à resignação fatalista, um cruzar de braços diante da vida, uma política de laisser faire espiritual: é antes a adesão consciente à sabedoria divina, que cobra o empenho do pastor pelo Reino de Deus e sua glória, a par com a doce submissão do cordeiro ao caminho que lhe é proposto, ainda que seja este coroado de espinhos e pregado a duras realidades. É elevar-se, pelo vento – pneuma –, à estatura do exemplo de Cristo – Sacerdote e vítima.

            É destas alturas que o panorama, a partir de perspectiva celeste, torna-se transparente como o ar ao entendimento: se o projeto for de Deus, dará certo, se for só dos homens, não permanecerá. Solidifica-se então, petrinamente, pela Igreja, a confiança no Senhor: ganham sentido a Fé, a Esperança, a Caridade, a humildade…

            Confiavam os Apóstolos, presos e ameaçados. E o fariseu Gamaliel os faz soltar. Há aqui um outro ponto de reflexão: Deus Se utiliza de todos nos Seus projetos de salvação, opositores inclusive (até o diabo serve a Deus, e, através da sua maior “vitória” na morte do Cristo, veio a Redenção do mundo… querendo ou não, ele trabalha para Deus). Mas é justo considerar que, como no caso de Gamaliel, há sem dúvida aqueles que, buscando sinceramente a verdade e a justiça, agem no caminho de Deus, talvez sem o saber. Os fariseus se opunham a Cristo, mas Gamaliel, como homem de boa vontade, soube discernir pelo bem.

Esta honestidade de intenção é, igualmente, um valor que conferia autoridade a Gamaliel no Sinédrio. Dele há registros hebraicos que atestam: “Quando ele morreu, a honra da Torá (a Lei) cessou, e pureza e piedade tornaram-se extintas” (cf. Gigot, F. 1909. Gamaliel. In: The Catholic Encyclopedia. New York, Robert Appleton Company. Nihil Obstat Remy Lafort, Censor; Imprimatur +John M. Farley, Archbishop of New York. Disponível em :<http://www.newadvent.org/cathen/06374b.htm>). E São Paulo, que fôra seu discípulo no judaísmo, diz ter sido “… formado na escola de Gamaliel, seguindo a linha mais escrupulosa dos nossos antepassados, cheio de zelo por Deus…” (At 22,3). Não há dúvida de que era sincera a sua busca de Deus, o que mais facilmente o torna um instrumento do Espírito Santo em prol dos Apóstolos e da Igreja nascente. O reflexo desta postura foi a sua autoridade moral junto aos judeus.

Este mesmo prestígio, a partir de uma vida coerente com o Evangelho, é necessário ao apostolado, para que pelas palavras dos fiéis da Igreja seja ouvida a Palavra, para que seja dado crédito à verdade de Deus, e portanto para que Deus seja de fato glorificado. A pregação dos Apóstolos foi eficiente porque, unidos ao Espírito Santo, podiam confirmar com suas vidas aquilo que anunciavam – o melhor apostolado é a santidade pessoal.

Da Sagrada Escritura, fica-nos como exemplo este empenho efetivo pelo bem da Igreja e dos irmãos, esta “recompensa de Deus” – “Gamaliel”, a tradução grega do nome hebraico, que devemos imitar como colaboradores, porém mais conscientes, do Paráclito.

José Duarte de Barros Filho  7-9/6/2014

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