Versículos

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A Santa Igreja ensina que a leitura bíblica deve ser orientada, de acordo com os parâmetros dogmáticos e mesmo espírito da Tradição (cf. Catecismo da Igreja Católica), sempre, portanto, dentro de um contexto correto, para que se evitem os erros (intencionais ou não…) de interpretação. Contudo, um enorme número de versículos, pelo seu próprio teor, pode ser de per si motivo de aprofundada meditação – evidentemente, tendo-se em vista o contexto – e creio que se pode dizer que, potencialmente, qualquer versículo bíblico, sob este aspecto, presta-se como trampolim para a riqueza da vida espiritual. Sendo, aliás, a Bíblia uma direção que Deus deu ao homem para conhecê-Lo, amá-Lo e segui-Lo, cabe o paralelo de que também a nossa vida, como ela, deve ser escrita assim, em cada versículo do dia a dia do nosso livro da vida, com a Palavra de Deus e num contexto de Salvação, uma a uma das nossas ações conjugando o Verbo de Deus.

Um destes numerosos versículos, e que bem nos remete às disposições deste tempo de Quaresma, é At 22,10, no contexto da conversão de São Paulo: “Perguntei: ‘Senhor, que farei?’ E o Senhor me disse: ‘Levanta-te e vai a Damasco. Lá te será dito tudo o que deves fazer’.” Uma primeira ideia é que, assim como São Paulo, depois que Deus Se manifesta na nossa vida, imediatamente sentimos a necessidade de saber como segui-Lo, concretamente. E a primeira coisa que Ele nos diz é: “Levanta-te”. Ergue-te, sai do pecado, assume a dignidade altíssima de Filho de Deus, irmão legítimo de Jesus Cristo e co-herdeiro do Céu. Deus nos quer de pé – elevados. Para isso nos criou. Certamente é experiência comum na vivência espiritual ouvir este renovado chamado do Senhor, sempre que caímos ou O procuramos mais intensamente; e aqui nos identificamos também com São Paulo, pois se caímos é do ginete da soberba, onde estamos montados e de cima do qual pretendemos conquistar – muitas vezes com a desculpa de que para Deus e em nome Dele! – as vidas alheias…

Saulo – o homem velho, ainda não Paulo – cai por volta do meio-dia: hora da maior manifestação da luz. Da luz do Cristo; da clareza com que Deus nos pede uma definição na vida. Esta é a hora culminante da nossa alma, o zênite para o espírito, aquela em que temos que decidir o nosso “Fiat”. “Zênite” que, do árabe samt, significa, justamente, “caminho, direção, rumo”. Por Providência, em terras arábicas descobriu São Paulo o Caminho, o mesmo que buscamos neste deserto quaresmal.

Continua a propósito o teor do versículo, “…e vai a Damasco”, isto é, dirigi-te, sem atrasos, sem opor obstáculos, aonde o Senhor indicar, seja no sentido físico, seja no sentido espiritual: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (cf. Jo 2,5), como ensina a Virgem Maria, que sem demoras visitou Isabel. E usualmente Deus nunca dá uma resposta pronta e acabada: antes, indica o caminho – pois em primeiro lugar é preciso darmos prova e exemplo de fé, confiança, coragem, disponibilidade, obediência e perseverança para segui-Lo, ou do contrário os nossos esforços não passarão de um entusiasmo temporário e superficial, como a semente que caiu em terra pouco profunda (cf. Mt 13, 1-23); depois, então, aos poucos, e normalmente através de outros, principalmente da correta direção espiritual de um santo sacerdote, nos irá indicando, no ritmo que Ele sabe conveniente – o tempo de Deus não é o tempo dos homens, e os caminhos de Deus não são os caminhos dos homens (cf. Is 55,8) – o que deveremos ir desenvolvendo em nossas vidas. Mas, ainda como São Paulo, não devemos hesitar, quando identificarmos o caminho. Ele fará decididamente a jornada para Damasco, da forma correta: deixando-se conduzir pelas mãos alheias, aceitando a ajuda que Deus determinou – o caminho da humildade, o mais difícil, o que nos crucifica – o único que salva.

E, se nesta estrada há mudanças súbitas de trajeto – doenças, fracassos, ou, ao contrário, sucessos – é apenas porque Deus está ajustando necessariamente a direção. Também o capitão de um navio, sem qualquer sinal externo evidente que seu passageiro possa perceber no mar, guina a embarcação do que parecia a rota evidente e tranquila. Mas só ele sabe da borrasca que vem à frente, e se o desvio é o melhor; ou, se é melhor enfrentar a tempestade, conhecendo que em tal caso a mudança de direção esgotaria o combustível e deixaria a embarcação à deriva; ele sabe que o navio e a tripulação podem enfrentar o mau tempo, e os exige e experimenta para fortificá-los no empenho e na confiança.

Paulo seguiu para Damasco. Nele havia, em meio à miséria dos erros, a vontade sincera de acertar. Mais uma vez, devemos identificar-nos com ele. Por isso seguiu, obediente, uma vez tendo visto a Luz que o cegou para o erro. Damasco então era uma cidade com muitos cristãos; originou-se e cresceu, uma das cidades mais antigas do mundo, ao redor de um rio e de um oásis, o que tornava possível a vida numa região de aridez e deserto; era ponto de contato entre o Oriente e o Ocidente. Assim como a Igreja. A “cidade de Deus” é a mais antiga morada da Criação, pois é o próprio seio de Deus; nela jorra a água batismal do Cristo, que nos dá a vida no deserto do pecado, umidificando o pó de que somos feitos e tornando-o maleável ao divino Oleiro, para o que o nosso barro seja configurado à Sua forma; é o ponto de contato onde se encontram todas as nações. É onde estão os cristãos. Paulo, já não mais Saulo, seguiu para a Igreja, esta cidade amuralhada – pois fora dela, como em Damasco, os caminhos são perigosos –, onde com ele podemos nos abrigar e ser curados da nossa cegueira espiritual, pelas mãos de outros que já estão mais próximos de Deus. Aí, como ele, saberemos o que fazer. Dentro deste redil, acertaremos o caminho. O caminho, a verdade e a vida.

José Duarte de Barros Filho  9/3/2014

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