Vivenciar a realidade da filiação: uma proposta quaresmal

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O ano passa voando e eis-nos já em plena Quaresma e, no primeiro domingo deste tempo, ouvimos o Evangelho das tentações do Senhor Jesus no deserto, ao qual foi conduzido pelo Espírito Santo. Nos últimos, dias, sobretudo virtualmente, mas também de maneira pessoal, tenho ouvido algumas propostas de meios para a Quaresma, coisas às quais podemos renunciar, virtudes ou defeitos nos quais trabalhar, seja para potenciá-los, seja para enfraquece-los, dependendo do caso.

Nesse contexto, os meus amigos do Movimento de Vida Cristã de Petrópolis me pediram que compartilhasse com eles uma meditação que os ajudasse a viver melhor a Quaresma. Lembrei então de um livro que li há alguns anos, sobre a Parábola do Filho Pródigo, do Padre Rupnik, chamado “Abraçou-o e cobriu-o de beijos”. Em concreto, uma parte do livro ficou gravada no meu coração: a interpretação dos versículos 17 ao 20 do capítulo 15 de Lucas, momento no qual o filho pródigo “cai em si” e decide voltar para a casa do Pai (Cf. “Lo abrazó y lo besó”, p. 50-51).

O que nos interessa nestas breves linhas é o discurso que o filho ensaia, para quando estiver diante do Pai: “já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados” (Lc 15,19). Rupnik explica que, neste discurso, de aparente sensatez e até de humilhação, se esconde a grande tentação de fechar-se em si mesmo, de querer por si mesmo reparar de alguma forma o erro cometido, sem a ajuda de Deus, sozinho. Dessa forma, mesmo não sendo já digno de ser chamado filho, pelo menos poderá ser tratado como empregado.

O autêntico caminho de conversão passa, em contraste com o discurso ensaiado pelo filho, por reconhecer que nunca poderemos negociar com Deus em pé de igualdade. Nunca seremos dignos de ser filhos, nem mesmo de ser empregados Seus. Tudo recebemos d’Ele gratuitamente, porque Ele é infinitamente Bom. Nenhuma virtude, nenhuma realização ou renúncia humana nos torna mais dignos da salvação, que Ele, gratuitamente, nos oferece com a sua Páscoa, e para a qual nos preparamos neste tempo de Quaresma.

A tomada de consciência do próprio pecado, do fracasso na vida espiritual, é uma experiência muito dura, que se a enfrentamos sozinhos, fechados em nossos esquemas, pode ser muito destrutiva. Por isso, é importante que esse momento seja ocasião para reconhecer que nenhum pecado apagará em nós a realidade da nossa filiação, recebida no Batismo. E que, sem importar o quão dramática que seja a nossa situação, sempre poderemos entrar novamente em nós mesmos e ouvir o Espírito do Filho, que clama “Abbá Pai!” (Cf. Gl 4,6).

Nesse sentido, mais do que propor algum meio concreto para a Quaresma, a minha proposta é lembrar cotidianamente a nossa filiação, aprendendo dos exemplos de Santa Maria e do Senhor Jesus que, constantemente, como fica explícito nos momentos mais decisivos da sua vida, pronunciaram o seu “Faça-se” à vontade do Pai. Pensemos, por exemplo, na Anunciação, no caso de Maria, e da oração no Horto das Oliveiras, no caso do Senhor Jesus. Nessa hora dramática, o Senhor Jesus disse: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42).

Eis então a minha proposta para a Quaresma: que todos nós nos unamos mais ao coração do Filho, para assumirmos a nossa identidade, ouvindo os gemidos inefáveis que o Espírito já pronuncia em nosso coração. Com certeza, cada um de nós enfrenta situações difíceis, que desafiam a nossa fé. Essas situações evidenciam as nossas fragilidades e limitações. Vivamos essas experiências como filhos: deixemo-nos salvar em todas elas pelo Senhor Jesus, o Filho, que é o nosso irmão mais velho.

O Senhor Jesus é, efetivamente, o irmão mais velho, tal como devia ser o da parábola do filho Pródigo. Ele não somente se alegra com o Pai sempre que voltamos à comunhão da casa paterna, mas está disposto a sair em nossa busca, colocando em risco a sua própria vida. Deixemo-nos, nestes dias quaresmais, encontrarmo-nos por Ele, e digamos como Pedro, quando afundava nas águas: “Salva-me”.

Membro do Sodalício de Vida Cristã desde 1996. Nascido no Peru em 1978, mora no Brasil desde 2001. Por muitos anos foi professor de Filosofia na Universidade Católica de Petrópolis. Atualmente faz parte da equipe de formação do Sodalício, é diretor do Centro de Estudos Culturais e desenvolve projetos de formação na Fé e evangelização da cultura para o Movimento de Vida Cristã.

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